11.11.06

Há uma pilha de livros na minha frente. Talvez um artigo no monitor. Estou bem.

Minha barba e meus olhos ajudam a tornar tudo negro por aqui. Gosto desta cor.

Gosto deste tempo chuvoso e frio. Não é ruim sentir frio porque gosto de aquecer-me.

Fui decompondo um conceito dito por outro e cheguei a mim. Gosto disso.

Expliquei pro Anderson qual o sentido de decompor o que decompus. Também gostei disso. Gosto de ser pedante.

Não consegui contar as telhas que vejo pela porta do meu quarto que dá para a noite. As telhas são imensamente incontáveis. Gosto do meu lirismo.

Inventei uma piada vendo TV e minha mãe danou a rir. Gosto de fazer outros rirem. Sou bom nisso.

Descobri que hoje é o fim do mundo. Daqui a pouco vou para a cama que daqui vejo. Gosto de dormir quando tive um bom dia.

Penso em você sempre que escrevo. Minha escrita tem melhorado. Adoro tentar te impressionar.

Olho para tudo que está nesta página e vejo que posso. Amo os meus motivos por isso.

Estou largando aquele quase artigo de lado para escrever algo sobre mim. Isso sim, é ótimo!

10.11.06

Guia para ser ex-esquerdista

Servem para quem aceitou as famosas “propostas irrecusáveis” e assumiu cargos de chefia em grandes publicações da mídia monopolista ou em alguma grande empresa privada, que exigem silêncio ou declarações adaptadas aos interesses dos “patrões” (esquecendo-se de que não existem “propostas irrecusáveis” mas sim espinhas dorsais excessivamente flexíveis).

Não seriam casos isolados, afinal as redações desses órgãos da mídia privada estão apinhados de ex-comunistas, ex-trotskistas, ex-esquerdistas em geral, “arrependidos” ou simplesmente “convertidos” e que passam a vida inteira – como certos “intelectuais” das universidades, que ganham em troca amplos espaços na grande imprensa – a dizer que já não são o que foram, “limpando-se” aos olhos da burguesia dos seus “pecadilhos de juventude”.

Indispensável a referência a que “se é imbecil aos 20 se não se é radical, se é imbecil aos 40 se ainda se continua a sê-lo”, ou alguma alusão como passar “de incendiário aos 20 a bombeiro aos 40”, deixando no ar a afirmação de que se teve uma juventude agitada antes de chegar à idade da razão.

Um bom começo pode ser dizer que “o socialismo fracassou”, que “está decepcionado com a esquerda”, “que são todos iguais”. Já estará em condições de dizer que “não existe mais esquerda e direita”, que alguns que se dizem de esquerda na verdade são uma “nova direita”, são piores que a direita e que é melhor então ficar eqüidistante. Do ceticismo se passa fácil ao cinismo de “votar na direita assumida” para derrotar a “direita disfarçada”.

Outra via é criticar veementemente Stalin, depois de dizer que ele foi igual a Hitler – “os dois totalitarismos” –, afirmar que ele apenas aplicou as idéias de Lênin, para finalmente dizer que as origens do “totalitarismo” já estavam na obra de Marx. Dizer que Weber tem mais capacidade explicativa do que Marx, que Raymond Aron tinha razão contra Sartre. Que o marxismo é redutivo, só leva em conta a economia, que seu reducionismo é a base do “totalitarismo” soviético. Que não deixa lugar para a “subjetividade”, que reduz tudo à contradição capital–trabalho sem levar em conta as “novas subjetividades”, advindas das contradições de gênero, de etnia, do meio ambiente etc.

Não falar de Fidel sem fazer preceder seu nome com um “ditador” e chamá-lo de Castro em vez de Fidel. Desqualificar Hugo Chávez como “populista” e, ao mesmo tempo, como “nacionalista”, dando a este a conotação de “fanatismo”, “fundamentalismo”. Concentrar a atenção na América Latina sobre a Bolívia e a Venezuela como países “problemáticos”, “instáveis”, sem fazer nenhuma menção à Colômbia. Sempre que falar da extensão da democracia no continente, acrescentar “exceto Cuba”. Nunca falar do bloqueio norte-americano a Cuba, mas sempre da “transição” – deixando sempre supor que transitariam em algum momento para “democracias” como as que andam por aqui.

Dizer que a América Latina “não existe”, são países sem unidade interna – mencionar “cucarachos”, de forma bem depreciativa. Que nossa política externa tem de olhar para o alto, relacionar-se com as grandes potências e tratar de ser uma delas, em lugar de ficar convivendo com os paises da região e os do sul do mundo – África do Sul, Índia, China etc.

Pronunciar-se contra as cotas nas universidades, dizendo que introduzem o racismo numa sociedade organizada em torno da “democracia racial” – uma citação de Gilberto Freire e o silêncio sobre Florestan Fernandes são bem-vindos –, que o mais importante é a igualdade diante da lei e a melhoria gradual do ensino básico e médio para que todos tenham finalmente – vai saber quando, mas é preciso ter paciência – acesso às universidades públicas. Dizer, sempre, que o principal problema do Brasil e do mundo é a educação. Que empregos há, possibilidades existem, mas falta qualificação da mão-de-obra. Que o principal não são os direitos, mas as oportunidades – falar da sociedade norte-americana como a mais “aberta”.

Desqualificar sempre o Estado, como ineficaz, burocrático, corrupto e corruptor, em contraposição à “economia privada”, ao “mercado”, com seu dinamismo, sua capacidade de inovação tecnológica. Exaltar as privatizações da telefonia – “antes ninguém podia ter telefone, agora qualquer pobre diabo na rua anda falando em celular” – e da Vale do Rio Doce, calar sobre o sucesso da Petrobras ou afirmar ainda: “imagine se tivesse se tornado Petrobrax, como estaria melhor!”.

Em suma, há tantos motivos para quem tiver decidido deixar de ser de esquerda – bastaria o “farinha pouca, meu pirão primeiro” – e buscar ganhar a vida de costas pro mundo e pra sua própria biografia. O “mercado” retribui generosamente os que renegam os princípios em que um dia acreditaram.

Mas muito mais fácil é continuar a ser de esquerda. Nem são necessários pretextos, bastam as razões sobre o que é este mundo e o que pode ser o outro mundo possível.


Emir Sader

9.11.06

Já imaginei para a minha vida uma grande narrativa. Seria imensamente sofrida porque senão não seria grandiosa. Uma idéia que o império dos fatos me mostra, naturalmente, ingênua, dia após dia. Por mais esforço que se tenha muda-se muito pouco do início ao fim do parágrafo. É por vezes imensamente sofrível viver uma narrativa medíocre, uma narrativa que gire em torno de uma vida que nem eu mesmo levo a sério. Deixo aos grandes escritores a glória. Há poetas demais, músicos demais, arte demais. Ficarei somente aqui, com uma única pretensão. Dentro dela tentarei negar-te para quem sabe dar um passo a frente e finalmente encontrar-te, modestamente e até alegremente, sem a minha dor de sempre que eu acreditava legitimar os meus pedidos.

Expor-me cruamente nesta página não fará que me estenda as mãos. Tentar dar a este demoníaco laço que nos prende uma grandeza épica é para os que já morreram. A inquietação em que estou agora ao pensar que em poucos dias posso não mais vê-la não será superada se eu aceitar que amanhã tudo se resolverá ou que não me pertence mais.

7.11.06

"Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno"

Van Gogh, o Suicidado da Sociedade, Antonin Artuad

4.11.06

“À noite saí a passear com o petiz. É preciso dizer-lhe que todas as noites, já antes, vínhamos passear por êste mesmo caminho, até aquela enorme pedra isolada, lá embaixo perto da sebe, onde começam os pastos comunais: um lugar deserto e encatador. Caminhávamos de mãos dadas, como de costume; uma mãozinha bem pequena, de dedos delgados, gelados, porque ele sofre do peito. “Pápotchka”, diz ele, “pápotchka” “Que há?”, pergunto-lhe (via seus olhos cintilarem). “Como te tratou êle, papai!” “Que fazer, Iliúchka?” “Não faças a pazes com ele, pápotchka, de modo nenhum. Os alunos dizem que ele te deu 10 rublos por isso.” “Não meu pequeno, por coisa alguma do mundo aceitaria dinheiro dêle, agora.” (Êle se pôs a tremer, agarrou minha mão nas suas, beijou-a.) “Pápotchka, provoca-o a um duelo, na escola eles me infernam dizendo que és um covarde, que não te baterás, mas que aceitarás dele 10 rublos.” “Não posso provocá-lo a duelo, Iliúchka”, respondo-lhe, e lhe expus brevemente o que acabo de dizer ao senhor a êste respeito. Êle me escutou. “Pápotchka”, diz ele, no entanto, “não faças as pazes com aquêle homem; quando eu crescer, eu mesmo o provocarei e o matarei!” Seus olhos brilhavam com um clarão intenso. Apesar de tudo, era pai dele e tornava-se necessário dizer-lhe uma palavra de verdade: “É um pecado”, expliquei eu, “matar seu próximo, mesmo em duelo.” “Pápotchka, eu o derrubarei, quando for grande, farei saltar seu sabre de suas mãos e me lançarei sobre ele, brandindo o meu, e lhe direi: poderia matar-te, mas perdôo-te!” Está vendo, senhor, está vendo que trabalho se operou na cabecinha dele, durante esses dois dias? Só fazia pensar na vingança com um sabre e deve ter falado disso no seu delírio. Quando voltou da escola, cruelmente batido, soube de tudo e, o senhor tem razão, não voltará mais lá. Fico sabendo que êle se levanta contra a classe inteira, que provoca a todos; está exasperado, seu coração arde de ódio e então tenho medo por ele. Voltamos a passear. “Pápotchka”, diz ele, “ficarei rico, serei oficial e baterei todos os inimigos, o czar me recompensará, voltarei para junto de ti e então ninguém ousará...” Após um silêncio, continuou, com os lábios trêmulos como antes: “Pápotchka, que cidade de gente ruim essa nossa!” “Sim, Iliúchka, é uma cidade de gente ruim.” “Pápotchka, vamos morar em outra, onde não nos conheçam.” “Gostaria bem, Iliúchka, mudemo-nos; sòmente é preciso juntar dinheiro.” Rejubilo-me por poder assim distraí-lo de seus sombrios pensamentos; pusemo-nos a fazer projetos sobre a instalação numa outra cidade, a compra de um cavalo e de uma tieliega. “A mamãe e as manas montariam nela, nós as cobriríamos bem, nós mesmos caminharíamos ao lado, tu montarias de vez em quando, enquanto eu iria a pé, porque é preciso poupar o cavalo, todos não poderão ir ao mesmo tempo, seria assim que viajaríamos.” Ficou encantado, sobretudo por ter um cavalo o conduziria. Sabe-se que um menino russo não vê nada de mais belo que um cavalo. Nós tagarelamos muito tempo. “Deus seja louvado”, pensei eu, “distraí-o e consolei-o.” Foi anteontem de noite; no dia seguinte, voltou da escola bastante sombrio. À noite, por ocasião do passeio, permaneceu silencioso. O vento elevou-se, o sol desapareceu, sentia-se o outono e já estava escuro; estávamos tristes. “Pois bem, meu rapaz, como vamos fazer nossos preparativos?” Pensava retornar a conversa da véspera. Nem um palavra. Mas seus dedinhos tremiam na minha mão. “Isto vai mal”, disse a mim mesmo, “há novidade.” Chegamos, como agora, até aquela pedra; sentei-me nela, haviam empinado papagaios que estalavam ao vento. Havia bem uns trinta. É a estação agora. “Deveríamos nós também, Iliúchka, empinar o papagaio do ano passado. Consertá-lo-ei. Que fizeste dele?” Meu filho cala-se, olha para o lado, desviando a vista. De repente, o vento se põe a assobiar, levantando areia... Lança-se par mim, com seus dois braços enlaça-me o pescoço, abraça-me. Sabe que, quando os meninos são taciturnos e altivos, retêm muito tempo suas lágrimas, mas, quando elas brotam, por motivo dum grande pesar, não correm, mas jorram? Suas lágrimas ardentes inundaram-me o rosto. Ele soluçava, convulsivamente, apertava-me contra ele. “Pápotchka”, gritou ele, “meu querido pápotchka, como ele te humilhou!” Então os soluços dominaram-me e nos abalavam, enlaçados sobre esta pedra. Ninguém nos via então, exceto Deus. Talvez me leve isso em conta. Agradeça a seu irmão, Alieksiéi Fiódorovitch. Não, não açoitarei meu filho para causar-lhe satisfação!”


Dostoiévski

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.