10.12.05

Lancei-me alegremente à sua conquista e todos os dias à ela ergo um monumento deformado e belo. Como não dizer coisas belas do que é belo, o que nos fazem invariavelmente belos?
A ela fiz uma proposta: vamos sujar nossos pés no monte de terra vermelha que as caçambas despejam diariamente, aquilo que insistem em chamar de rejeito*. Vamos brincar como as outras crianças.
Aguardo a resposta.


* o que sobra da planificação primeira que é necessária para erguerem as suas vidas sem desníveis e sem trincas, e assim alcançarem a perfeição pela precisão, por via de fórmulas testadas e impessoais.
Na última quarta, numa mesa vermelha da cantina gasta,
um amigo, à minha esquerda, perguntou-me:
"Por que olha lá para o terceiro andar ?"

Talvez não perguntasse se percebesse
a minha súbita alegria



"Por não estarem distraídos

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Clarice Lispector"

9.12.05

Normal Size 12

Da fonte Arial tamanho Normal size 12 para traços irregulares de uma mão divertidamente trêmula. O passo para superar a virtualidade.

8.12.05

O infradesespero

Há um tipo provisório de desespero - mais que impaciência menos que angústia - que ocorre dentro mesmo e à revelia do grande desespero do qual seria uma partícula necrosada capaz de invadi-lo subitamente - e que pode ser conjurado por agentes físicos e acontecimentos exteriores à alma: a chegada de uma carta, a ingestão de um alcalóide, um telefonema, o acender de uma lâmpada, a aparição de uma mulher... É mal-estar, porém - sem maior significação e removível mediante pequenos acasos e expedientes pueris -, pode levar inopinadamente ao suicídio, transformando-se em fatalidade do destino. É presiço opor-lhe sempre os nossos recursos de cá.
- Recursos de cá?
- Tudo o que, vago e indecifrado, ainda seja deste mundo... todas as forças, presenças e relações que constituem o nosso eu quotidiano desligado de suas raízes transcendentes, e à margem do divino perdido...

Aníbal M. Machado, mas poderia ser meu ou nosso

4.12.05

Ainda sobre o amor - João Ivo

Nemorino não é tão realista (ou,... pessimista?) como luciano:
NEMORINO 
Cara Adina!... Non poss'io.

ADINA
Tu nol puoi? Perché?

NEMORINO
Perché!
Chiedi al rio perché gemente
dalla balza ov'ebbe vita
corre al mar, che a sé l'invita,
e nel mar sen va a morir:
ti dirà che lo strascina
un poter che non sa dir.

ADINA
Dunque vuoi?...

NEMORINO
Morir com'esso, ma morir seguendo te.

ADINA
Ama altrove: è a te concesso.

NEMORINO
Ah! possibile non è.

ADINA
Per guarir da tal pazzia,
ché è pazzia l'amor costante,
dèi seguir l'usanza mia,
ogni dì cambiar d'amante.
Come chiodo scaccia chiodo,
così amor discaccia amor.
In tal guisa io rido e godo,
in tal guisa ho sciolto il cor.

NEMORINO
Ah! te sola io vedo, io sento
giorno e notte e in ogni oggetto:
d'obbliarti in vano io tento,
il tuo viso ho sculto in petto...
col cambiarsi qual tu fai,
può cambiarsi ogn'altro amor.
Ma non può, non può giammai
il primiero uscir dal cor.

(partono)

NEMORINO
¡Querida Adina!... No puedo.

ADINA
¿No puedes? ¿Por qué?

NEMORINO
¡Por qué!
Pregúntale al río por qué
desde la gruta en donde nace
se dirige raudo hasta el mar
y en el seno del mar muere;
te dirá que está hechizado
por un poder que no sabrá decirte.

ADINA
¿Entonces quieres?...

NEMORINO
¡Morir como él, morir siguiéndote!

ADINA
Ama a otra: nadie te lo impide.

NEMORINO
¡Ah! No es posible...

ADINA
Para sanar de esa locura,
pues locura es el amor constante,
debes seguir mi ejemplo
y cambiar cada día de amante.
Como un clavo saca otro clavo,
así el amor aleja al amor.
De esta manera yo disfruto,
de esta manera tengo libre el corazón.

NEMORINO
¡Ah! En cada objeto
que esta a mi vista,
te veo, te siento solo a ti:
en vano intento olvidarte,
tu rostro grabado está en mi pecho...
Cambiando como tú haces,
puede cambiarse cualquier otro amor,
pero jamás podré borrarte de mi corazón.

(salen)

Só para romper um pouco com esse lirismo e a vulgaridade que me acomentem ultimamente vamos de Nitx que o João disse que não é viado.

- Considera-se uma mulher profunda - Por quê?, porque nela jamais chega-se ao fundo. A mulher não é nem sequer superficial.

- Como nos devemos petrificar - Endurecer lenta, lentamente, como uma pedra preciosa - e acabar por ficar aí tranquilo, para o gozo da eternidade.

- Remedium amores - Na maior parte dos casos, o que ainda de mais eficaz contra uma amor é o velho remédio radical: o amor partilhado.

- Uma mulher que prossegue uma vingança venceria o próprio destino. A mulher é indiscutivelmente mais má que o homem e mais calculada; a bondade é nela forma de degenerescência.

- Quanto mais uma mulher for verdadeiramente mulher, tanto mais se defenderá com pés e mãos dos direitos em geral: o estado de natureza, a eterna gerra entre os sexos, assinala-lhe, sem embargo possível, o primeiro lugar. Atendeu-se à minha definição do amor? É a única digna de um filósofo. "Em relação aos meios, o amor é guerra; no seu fundamento, ódio mortal entre os sexos". Atendeu-se à minha resposta à pergunta sobre a maneira como se cura, como se "salva" uma mulher? " Faça-se-lhe um filho. A mulher precisa de filhos, o homem é apenas meio". assim falou Zaratustra.

- Como se reconhece o mais ardente - De duas pessoas que lutam conjutamente, ou se ama, ou se admiram, a mais ardente escolhe sempre a posição mais desconfortável. Isto vale igualmente para os povos.

- De nenhuma outra leitura sei que, como a de Shakespeare, despedace o coração: quando deve ter sofrido aquele homem para se sentir de tal maneira a necessidade de ser bobo!

- Os sexos enganam-se mutuamente: e isso porque no fundo só estimam a si próprios (ou o seu próprio ideal, para me exprimir de um modo mais amável). Assim, o homem quer que a mulher seja, pacífica, mas precisamente a mulher é essencialmente conflituosa como uma gata, por mais habilidades que tenha em dar-se aparências pacíficas.

- Inimigo das mulheres - " A mulher é nossa inimiga" - pela voz daquele que, enquanto homem, fala assim aos homens, exprime-se o instinto indomado, que não somente se odeia a si próprio mas também odeia os seus meios.

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.