Mostrando postagens com marcador Escritores e poetas. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Escritores e poetas. Mostrar todas as postagens

24.11.07

Rilke

O Solitário

Não: uma torre se erguerá do fundo
do coração e eu estarei à borda:
onde não há mais nada, ainda acorda
o indizível, a dor, de novo o mundo.

Ainda uma coisa, só, no imenso mar
das coisas, e uma luz depois do escuro,
um rosto extremo do desejo obscuro
exilado em um nunca-apaziguar,

ainda um rosto de pedra, que só sente
a gravidade interna, de tão denso:
as distâncias que o extinguem lentamente
tornam seu júbilo ainda mais intenso.

Rainer Maria Rilke


Tradução: Augusto de Campos

20.11.07

Se Fosse Alguma Coisa, Não Poderia Imaginar

Monotonizar a existência, para que ela não seja monótona. Tornar anódino o quotidiano, para que a mais pequena coisa seja uma distracção. No meio do meu trabalho de todos os dias, baço, igual e inútil, surgem-me visões de fuga, vestígios sonhados de ilhas longínquas, festas em áleas de parques de outras eras, outras paisagens, outros sentimentos, outro eu. Mas reconheço, entre dois lançamentos, que se tivesse tudo isso, nada disso seria meu. Mais vale, na verdade, o patrão Vasques que os Reis do Sonho; mais vale, na verdade, o escritório da Rua dos Douradores do que as grandes áleas dos parques impossíveis. Tendo o patrão Vasques, posso gozar a visão interior das paisagens que não existem. Mas se tivesse os Reis do Sonho, que me ficaria para sonhar? Se tivesse as paisagens impossíveis, que me restaria de possível ?

(...) Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros pode sonhar-se imperador romano; o Rei de Inglaterra não o pode fazer, porque o Rei de Inglaterra está privado de o ser, em sonhos, outro rei que não o rei que é. A sua realidade não o deixa sentir.


Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego'

2.11.07

Manuel Bandeira

PORQUINHO-DA-ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos, mais limpinhos,
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.


NAMORADOS

O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:
- Antônia, ainda não me acostumei com o seu corpo, com a sua cara.
A moça olhou de lado e esperou.
- Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listada?
A moça se lembrava:
- A gente fica olhando...
A meninice brincou de novo nos olhos dela.
O rapaz prosseguiu com muita doçura:
- Antônia, você parece uma lagarta listada.
A moça arregalou os olhos, fez exclamações.
O rapaz concluiu:
- Antônia, você é engraçada, você parece louca.


O EXEMPLO DAS ROSAS

Uma mulher queixava-se do silêncio do amante:
- Já não gostas de mim, pois não encontras palavras para me louvar!
Então ele, apontando-lhe a rosa que lhe morria no seio:
- Não será insensato pedir a esta rosa que fale?
Não vês que ela se dá toda no seu perfume?


BELO BELO

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Tenho o fogo de constelações extintas há milênios.
E o risco brevíssimo — que foi? passou — de tantas estrelas cadentes.

A aurora apaga-se,
E eu guardo as mais puras lágrimas da aurora.

O dia vem, e dia adentro
Continuo a possuir o segredo grande da noite.

Belo belo belo,
Tenho tudo quanto quero.

Não quero o êxtase nem os tormentos.
Não quero o que a terra só dá com trabalho.

As dádivas dos anjos são inaproveitáveis:
Os anjos não compreendem os homens.

Não quero amar,
Não quero ser amado.
Não quero combater,
Não quero ser soldado.

— Quero a delícia de poder sentir as coisas mais simples.


BELO BELO II

Belo belo minha bela
Tenho tudo que não quero
Não tenho nada que quero
Não quero óculos nem tosse
Nem obrigação de voto
Quero quero
Quero a solidão dos píncaros
A água da fonte escondida.
A rosa que floresceu
Sobre a escarpa inacessível
A luz da primeira estrela
Piscando no lusco-fusco
Quero quero
Quero dar a volta ao mundo
Só num navio de vela
Quero rever Pernambuco
Quero ver Bagdad e Cusco
Quero quero
Quero o moreno de Estela
Quero a brancura de Elisa
Quero a saliva de Bela
Quero as sardas de Adalgisa
Quero quero tanta coisa
Belo belo
Mas basta de lero-lero
Vida noves fora zero


ARTE DE AMAR

Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma.
A alma é que estraga o amor.
Só em Deus ela pode encontrar satisfação.
Não noutra alma.
Só em Deus - ou fora do mundo.

As almas são incomunicáveis.


POEMA ERÓTICO

Teu corpo claro e perfeito,
- Teu corpo de maravilha
Quero possuí-lo no leito
Estreito da redondilha...

Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa... flor de laranjeira...

Teu corpo branco e macio
É como um véu de noivado...
Teu corpo é pomo doirado...

Rosal queimado do estio,
Desfalecido em perfume...

Teu corpo é a brasa do lume...

Teu corpo é chama e flameja
Como à tarde os horizontes...

É puro como nas fontes
A água clara que serpeja,
Que em cantigas se derrama...

Volúpia de água e da chama...

A todo momento o vejo...
Teu corpo... a única ilha
No oceano do meu desejo...

Teu corpo é tudo o que brilha,
Teu corpo é tudo o que cheira...
Rosa, flor de laranjeira...



Escrevo quando não acho o que quero ler. Por necessidade, não só para ser visto. Uma semana que me diz: "Virão muitas e muitas sem que a veja. Escreva! É o melhor que faz. Não encontrará em lugar algum o seu conforto." Bem, tenho Bandeira, não há por que escrever. Até do teu corpo claro ele fala.

26.9.07

Estupor

esse súbito não ter
esse estúpido querer
que me leva a duvidar
quando eu devia crer

esse sentir-se cair
quando não existe lugar
aonde se possa ir

esse pegar ou largar
essa poesia vulgar
que não me deixa mentir

Paulo Leminski

2.7.07

Walking Around


Sucede que me canso de ser hombre.
Sucede que entro en las sastrerías y en los cines
marchito, impenetrable, como un cisne de fieltro
Navegando en un agua de origen y ceniza.

El olor de las peluquerías me hace llorar a gritos.
Sólo quiero un descanso de piedras o de lana,
sólo quiero no ver establecimientos ni jardines,
ni mercaderías, ni anteojos, ni ascensores.

Sucede que me canso de mis pies y mis uñas
y mi pelo y mi sombra.
Sucede que me canso de ser hombre.

Sin embargo sería delicioso
asustar a un notario con un lirio cortado
o dar muerte a una monja con un golpe de oreja.
Sería bello
ir por las calles con un cuchillo verde
y dando gritos hasta morir de frío

No quiero seguir siendo raíz en las tinieblas,
vacilante, extendido, tiritando de sueño,
hacia abajo, en las tapias mojadas de la tierra,
absorbiendo y pensando, comiendo cada día.

No quiero para mí tantas desgracias.
No quiero continuar de raíz y de tumba,
de subterráneo solo, de bodega con muertos
ateridos, muriéndome de pena.

Por eso el día lunes arde como el petróleo
cuando me ve llegar con mi cara de cárcel,
y aúlla en su transcurso como una rueda herida,
y da pasos de sangre caliente hacia la noche.

Y me empuja a ciertos rincones, a ciertas casas húmedas,
a hospitales donde los huesos salen por la ventana,
a ciertas zapaterías con olor a vinagre,
a calles espantosas como grietas.

Hay pájaros de color de azufre y horribles intestinos
colgando de las puertas de las casas que odio,
hay dentaduras olvidadas en una cafetera,
hay espejos
que debieran haber llorado de vergüenza y espanto,
hay paraguas en todas partes, y venenos, y ombligos.
Yo paseo con calma, con ojos, con zapatos,
con furia, con olvido,
paso, cruzo oficinas y tiendas de ortopedia,
y patios donde hay ropas colgadas de un alambre:
calzoncillos, toallas y camisas que lloran
lentas lágrimas sucias.


Pablo Neruda

24.6.07

Deus apenas fez a água, mas o homem fez o vinho - Victor Hugo


O homem que só bebe água tem algum segredo que pretende ocultar dos seus semelhantes -
Charles Baudelaire

1.6.07

OLHOS NÃO SE COMPRAM

Do cinema lindo & phoda de existir e de como uma mulher pode encantar nos detalhes de nós dois. Quando ela pede pra gente virar os olhos ou fechá-los bem fechados. Só enquanto troca a calcinha, vupt, o barulhinho do elástico, mesmo com toda intimidade desse mundo, às vezes intimidade de anos, vale, vale. Só enquanto troca o sutiã, biquíni, parte de cima, ajeita a parte de baixo, areia do doce balanço da beira dos mares, só enquanto tira uma toalha do banho, primeira viagem, só enquanto está lindamente menstruada e quer guardar-se, embora saiba que atravessamos com amor e gosto todo o seu mar vermelho e ainda mais mares aparecessem a cada mês. “Feche os olhos”, diz. “Vira o rosto”, safadeza-se, diva sob seguras telhas. Só para manter o suspense do cinesmascope debaixo do mesmo teto. “Pronto, pode olhar”. Ai ela ressurge mais linda ainda, cabelinhos molhados, com aqueles cremes todos da Lancôme ou com simples sabonetes Dove ou aqueles de nove em cada dez estrelas de Hollywood, Lux, deluxe, eu morro nesses lapsos de tempo, elipses do desejo, frações de segundo que são eternas de olhos fechados para quem meus olhos na terra, que há de comê-los inté os aros dos óculos e as safenas, mais abriram e justificaram seu brilho castanho mesmo em dias de torpor e existência de pára-brisas lusco-fusco.

Xico sá

Retirado do Blog: O Carapuceiro

30.5.07

Soneto da Hora Final

Será assim, amiga: um certo dia
Estando nós a contemplar o poente
Sentiremos no rosto, de repente
O beijo leve de uma aragem fria.

Tu me olharás silenciosamente
E eu te olharei também, com nostalgia
E partiremos, tontos de poesia
Para a porta de treva aberta em frente.

Ao transpor as fronteiras do Segredo
Eu, calmo, te direi: – Não tenhas medo
E tu, tranqüila, me dirás: – Sê forte.

E como dois antigos namorados
Noturnamente triste e enlaçados
Nós entraremos nos jardins da morte.


Vinicius

24.3.07

"Começo, isto é, gostaria de começar minhas memórias no dia 19 de setembro do ano passado, precisamente no dia em que pela primeira vez encontrei...

Mas explicar quem encontrei, assim de antemão, quando ninguém sabe nada, será vulgar; mesmo êste meu tom, creio, é vulgar: depois de ter jurado a mim mesmo evitar os ornamentos literários, eis que quebro meu juramento logo na primeira linha. Além disso, para descrever de maneira sensata, basta-me querê-lo. Salientarei ainda que não existe, acredito, uma língua européia tão difícil de se escrever quanto o russo. Acabo de reler o que escrevi agora, e vejo que sou muito mais inteligente do que isso que está aí escrito. Como se explica então que as coisas enunciadas por um homem inteligente sejam infinitamente mais tôlas que o que permanece em seu espírito? Já notei isso mais de uma vez em mim e em meu comércio oral com os outros homens durante todo êste último ano fatal, e tal fato me atormentou bastante.

Embora comece no dia 19 de setembro, direi no entanto em duas palavras quem soou, onde estive antes desta data e em seguida o que podia ter em mente, pelo menos parcialmente, naquela manhã de 19 setembro, para que isto seja mais inteligível ao leitor, e talvez também a mim."


O ADOLESCENTE, F. M. Dostoiévski

17.3.07

O outro canto de dança

1


“Em teus olhos olhei, de pouco tempo, ó vida: vi ouro luzir na noite de teus olhos ─ parou meu coração dessa volúpia.

─ dourado barquinho vi luzir em águas noturnas, um flutuante, dourado barquinho a submergir, a embarcar água, novamente a acenar!

Para o meu pé, frenético pela dança, lançaste um olhar, um ondeante olhar, sorridente, indagador, enternecedor.

Duas vezes somente, com mãos pequenas, bateste as tuas castanholas ─ e já o meu pé se agitava no frenesi pela dança ─

Meu calcanhar se empinava, os dedos do pé escutavam atentos para compreender-te: pois o ouvido, o dançarino ─ o tem nos dedos do pés!

Pulei para ti ─ mas recuastes e fugiste ante o meu pulo; e açoitaram-me as línguas volantes do teu cabelo em fuga!

Pulei para longe de ti e das tuas serpentes; e já lá estavas tu, voltada pela metade, o olhar cheio de desejo.

Com sinuosos olhares ─ ensina-me sinuosos caminhos; em sinuosos caminhos aprende o meu pé – a astuciar!

Temo-te de perto, amo-te de longe. A tua fuga me atrai, se me procuras, estaco; ─ sofro, mas quem não sofreria de bom grado por ti!

Ó tu, cuja frieza incende, cujo ódio fascina, cuja fuga enlaça, cujo escárnio ─ comove:

─ quem não te odiaria, ó grande enlaçadora, enredadora, sedutora, tentadora, exploradora, descobridora! Quem não te amaria, inocente, impaciente, pecadora com olhos de criança apressada como o vento!

Para onde me arrastas, agora, indomável portento? E agora voltas a fugir de mim, amável e ingrata traquinas!

Eu te acompanho na dança, sigo as tuas menores pegadas. Quem és? Dá-me a mão! Ou, mesmo, somente um dedo!

Aqui há cavernas e matas: iremos extraviar-nos! ─ Alto! Detém-te. Não vês voejarem corujas e morcegos?

Ah, coruja! Ah, morcego! Queres zombar de mim? Onde estamos? Aprendeste-o dos cães, este uivar e ganir.

Graciosamente me arreganhas os teus dentinhos brancos; por entre ondeadas melenas, investem contra mim os teus olhos malvados.

É uma dança desenfreada; eu sou o caçador ─ queres ser o meu cão ou meu cabrito montês?

Fica a meu lado, agora! E depressa, malvada saltadora! Agora, sobe! Para a outra banda! ─ Ai de mim! Eu mesmo caí ao saltar!

Olha-me jazendo no solo, ó temerária, e pedindo mercê!

Gostaria de ir contigo ─ por sendas mais suaves!

─ pela senda do amor, por entre moitas silenciosas e coloridas! Ou, então, lá embaixo, ao longo do lago, onde nadam e dançam peixes dourados!

Estás cansada, agora? Há, por lá, ovelhas e rubros crepúsculos; não é bonito dormir ao som de flautas de pastores?

Sente-se assim tão cansada? Eu te levo até lá, deixa apenas cair os braços! E, se estás com sede ─ eu teria alguma coisa, mas a tua boca não quer beber! ─

─ Oh, essa maldita cobra e bruxa, ágil, flexível, escorregadia! Para onde fostes? Mais sinto no rosto dois leves toques e duas rubras manchas da tua mão!

Eu, sim, estou realmente cansado de ser sempre o mais parvo dos teus pastores! Se, até aqui, cantei para ti, bruxa, deve tu, agora ─ gritar!

Ao compasso do meu chicote deves dançar e gritar! Terei esquecido o chicote? ─ Não!”


Zaratustra, F. Nietzsche


uma palavra ilegível

11.3.07

O Haver - Vinicius de Moraes (participação de Edu Lobo)

Não tem muito tempo que experimentei fazer um pequeno video com um poema de Vinicius.
É um poema que volta para mim de tempos em tempos como tudo que amo e deixo escorrer pelas
mãos que nunca agarram.
É um video simples e simples.

21.1.07

Dialética

É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz

Mas acontece que eu sou triste...


Vinícius de Moraes



...
acontece também que ela é triste. Quem sabe um dia eu volte a lê-la e render-me novamente a sua tristeza.


31.12.06

Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado sem carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser, novo
até no coraçao das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?).

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.

Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.

Dentro de você é que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Drummond

23.12.06

O guardador de rebanhos - VIII

[213]


Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.


Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem


E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!


Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz


E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.


A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.


Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.


Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
..........................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.


A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.


A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.


Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.


Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade


Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.


Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
.................................................................................

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
....................................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?


Alberto Caeiro 08-03-1914

8.12.06

Caçador de mim

Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu caçador de mim

Preso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou me encontrar
Longe do meu lugar
Eu, caçador de mim

Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
Abrir o peito a força, numa procura
Fugir as armadilhas da mata escura

Longe se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir
oque me faz sentir
Eu, caçador de mim

Luís Carlos Sá e Sérgio Magrão

3.12.06

















A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre.
E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.

Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego'




29.11.06

AS FÃS DO CHICO BUARQUE SÃO PIORES QUE AS DO RICKY MARTIN

Bem piores… Isso porque as fãs do astro porto-riquenho, segundo o senso comum preconceituoso, são ‘ignorantes’. “Coitadas”, todos dizem, “é tudo que elas têm…”.
Mas e as fãs de Chico Buarque? Elas são esclarecidas, têm boa formação escolar e acadêmica, conhecem outros idiomas, lêem bastante e às vezes até escrevem. Não, elas não são ‘ignorantes’. Pelo menos, não dentro desse critério idiota usado pela maioria burra para definir o que é ‘ignorância’.
As fãs do compositor de olhos ardósia são esclarecidíssimas. Mulheres do mundo, mulheres cosmopolitas, mulheres arrojadas, inteligentes, ousadas… São a favor do aborto e contra a pena de morte, porque as fãs do Chico Buarque flertam com algum esquerdismo ideológico; ou, pelo menos, são francamente anti-conservadoras.
Ou ainda podem ser conservadoras, talvez de ultra direita, mas suas opiniões sempre resultam de alguma pesquisa e seguem critérios lógicos. Independente da ideologia, ela sempre sabe defender muito bem seu ponto-de-vista.
E, sejamos honestos, são também elegantes. Podem ser moças ou velhas, ripongas ou patricinhas, ricas ou pseudo-proletárias da FFLCH; tanto faz. São sempre elegantes. Sabem compor bons visuais tanto com roupas caras da moda quanto com camisetas puídas de brechó.
Nem sempre são bonitas, é verdade, mas isso é só um detalhe. Elas são mulheres desprovidas de preconceitos estéticos, tanto mais quando são inequivocamente feias (porque, vocês sabem, a beleza é subjetiva, mas a feiúra é bem objetiva).
Elas adoram a poesia de Chico Buarque. Elas enaltecem suas letras. Algumas, sem dar na pinta que é por fanatismo, até gostam de seu timbre. Dizem, como se isso transformasse uma observação pessoal em axioma, que algumas músicas só ficam boas “na voz do Chico”. E todos e todas concordam.
As fãs de Chico Buarque são mulheres ocupadas. Mesmo quando não fazem nada elas são ocupadíssimas. Há livros para ler, filmes para ver, lugares para conhecer. Estão sempre em débito com as artes, com a cultura, com as vanguardas em geral.
Não são preconceituosas, mas não conseguem tolerar as fãs dos cantores populares. Consideram um grande absurdo esse fanatismo descabido por gente sem talento. Não poupam xingamentos ou ironias quando falam das fãs de Wando, Fábio Junior, Daniel, Leonardo, Alexandre Pires.
Um absurdo essa atração sexual idiota! Não compactual com o vexame de uma fã que se rebaixa sobremaneira apenas pela atração física, ou qualquer outro devaneio idiota em relação ao seu ídolo.
Elas são fãs de Chico Buarque. São fãs do compositor, do escritor, do poeta. E também do despojado jogador de futebol, do gente-boa que deve ter um ótimo papo no boteco, do elegantíssimo intelectual que passeia por Paris como se andasse pelo quintal da casa dos pais etc etc etc.
Idolatram, sem qualquer culpa, aquele que construiu uma carreira artística sempre dentro de rígidos e incontestáveis critérios de qualidade. O fanatismo se dá pelo talento, é uma atração estética, cultural, teórica talvez.
Até que ele surge no palco.
Toda a apreciação cultural dá vez aos gritos de “Lindo! Gostoso! Lindo!”. Elas choram, elas berram, elas o deixam ainda mais tímido. É exatamente o mesmo comportamento das fãs de todos aqueles cantores que elas tanto odeiam. Até o estúpido ‘karaokê coletivo’ elas fazem.
Algumas se organizam em caravanas, como fazem as odiadas fãs dos cantores populares. As de Chico não chegam a fretar uma kombi de Ermelino Matarazzo, mas trocam e-mails entre si, eufóricas, já combinando com que carro vão, juntas, ao espetáculo.
Chico não tem nada a ver com os tais cantores populares. Não mesmo. Mas suas fãs são idênticas às deles. São civilizadas, cultas e lindas até que finalmente abrem mão desse teatro idiota e passam a ser aquilo que sempre foram.
Talvez seja por isso que Chico Buarque faça pouquíssimos shows.

ps - Caso Grave e Infelizmente Corriqueiro: fã do Chico que também adora Diogo Mainardi.

Retirado de Gravatai Merengue: http://gravataimerengue.com/?p=95491977
Desciclopédia tem um tópico dedicado ao Chico: http://desciclo.pedia.ws/wiki/Chico_Buarque

pps - Eu gosto do Chico

ppps - valeu pelos links acima, Tião!

28.11.06

Depois duma noite de chuva

O mundo está incrivelmente belo,
As mulheres estão incrivelmente belas,
A comida está incrivelmente bela,
As mangas estão incrivelmente belas,
As máquinas estão incrivelmente belas.
E tudo isso porque eu, que não me via,
Estou incrivelmente belo!



Poeminho do Contra

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!
(Prosa e Verso, 1978)

7.11.06

"Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno"

Van Gogh, o Suicidado da Sociedade, Antonin Artuad

4.11.06

“À noite saí a passear com o petiz. É preciso dizer-lhe que todas as noites, já antes, vínhamos passear por êste mesmo caminho, até aquela enorme pedra isolada, lá embaixo perto da sebe, onde começam os pastos comunais: um lugar deserto e encatador. Caminhávamos de mãos dadas, como de costume; uma mãozinha bem pequena, de dedos delgados, gelados, porque ele sofre do peito. “Pápotchka”, diz ele, “pápotchka” “Que há?”, pergunto-lhe (via seus olhos cintilarem). “Como te tratou êle, papai!” “Que fazer, Iliúchka?” “Não faças a pazes com ele, pápotchka, de modo nenhum. Os alunos dizem que ele te deu 10 rublos por isso.” “Não meu pequeno, por coisa alguma do mundo aceitaria dinheiro dêle, agora.” (Êle se pôs a tremer, agarrou minha mão nas suas, beijou-a.) “Pápotchka, provoca-o a um duelo, na escola eles me infernam dizendo que és um covarde, que não te baterás, mas que aceitarás dele 10 rublos.” “Não posso provocá-lo a duelo, Iliúchka”, respondo-lhe, e lhe expus brevemente o que acabo de dizer ao senhor a êste respeito. Êle me escutou. “Pápotchka”, diz ele, no entanto, “não faças as pazes com aquêle homem; quando eu crescer, eu mesmo o provocarei e o matarei!” Seus olhos brilhavam com um clarão intenso. Apesar de tudo, era pai dele e tornava-se necessário dizer-lhe uma palavra de verdade: “É um pecado”, expliquei eu, “matar seu próximo, mesmo em duelo.” “Pápotchka, eu o derrubarei, quando for grande, farei saltar seu sabre de suas mãos e me lançarei sobre ele, brandindo o meu, e lhe direi: poderia matar-te, mas perdôo-te!” Está vendo, senhor, está vendo que trabalho se operou na cabecinha dele, durante esses dois dias? Só fazia pensar na vingança com um sabre e deve ter falado disso no seu delírio. Quando voltou da escola, cruelmente batido, soube de tudo e, o senhor tem razão, não voltará mais lá. Fico sabendo que êle se levanta contra a classe inteira, que provoca a todos; está exasperado, seu coração arde de ódio e então tenho medo por ele. Voltamos a passear. “Pápotchka”, diz ele, “ficarei rico, serei oficial e baterei todos os inimigos, o czar me recompensará, voltarei para junto de ti e então ninguém ousará...” Após um silêncio, continuou, com os lábios trêmulos como antes: “Pápotchka, que cidade de gente ruim essa nossa!” “Sim, Iliúchka, é uma cidade de gente ruim.” “Pápotchka, vamos morar em outra, onde não nos conheçam.” “Gostaria bem, Iliúchka, mudemo-nos; sòmente é preciso juntar dinheiro.” Rejubilo-me por poder assim distraí-lo de seus sombrios pensamentos; pusemo-nos a fazer projetos sobre a instalação numa outra cidade, a compra de um cavalo e de uma tieliega. “A mamãe e as manas montariam nela, nós as cobriríamos bem, nós mesmos caminharíamos ao lado, tu montarias de vez em quando, enquanto eu iria a pé, porque é preciso poupar o cavalo, todos não poderão ir ao mesmo tempo, seria assim que viajaríamos.” Ficou encantado, sobretudo por ter um cavalo o conduziria. Sabe-se que um menino russo não vê nada de mais belo que um cavalo. Nós tagarelamos muito tempo. “Deus seja louvado”, pensei eu, “distraí-o e consolei-o.” Foi anteontem de noite; no dia seguinte, voltou da escola bastante sombrio. À noite, por ocasião do passeio, permaneceu silencioso. O vento elevou-se, o sol desapareceu, sentia-se o outono e já estava escuro; estávamos tristes. “Pois bem, meu rapaz, como vamos fazer nossos preparativos?” Pensava retornar a conversa da véspera. Nem um palavra. Mas seus dedinhos tremiam na minha mão. “Isto vai mal”, disse a mim mesmo, “há novidade.” Chegamos, como agora, até aquela pedra; sentei-me nela, haviam empinado papagaios que estalavam ao vento. Havia bem uns trinta. É a estação agora. “Deveríamos nós também, Iliúchka, empinar o papagaio do ano passado. Consertá-lo-ei. Que fizeste dele?” Meu filho cala-se, olha para o lado, desviando a vista. De repente, o vento se põe a assobiar, levantando areia... Lança-se par mim, com seus dois braços enlaça-me o pescoço, abraça-me. Sabe que, quando os meninos são taciturnos e altivos, retêm muito tempo suas lágrimas, mas, quando elas brotam, por motivo dum grande pesar, não correm, mas jorram? Suas lágrimas ardentes inundaram-me o rosto. Ele soluçava, convulsivamente, apertava-me contra ele. “Pápotchka”, gritou ele, “meu querido pápotchka, como ele te humilhou!” Então os soluços dominaram-me e nos abalavam, enlaçados sobre esta pedra. Ninguém nos via então, exceto Deus. Talvez me leve isso em conta. Agradeça a seu irmão, Alieksiéi Fiódorovitch. Não, não açoitarei meu filho para causar-lhe satisfação!”


Dostoiévski

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.