24.12.05

Não dou a mínima para o natal. Mas hoje vi a minha mãe feliz ao preparar uma farofa para levar na ceia na casa de minha vô. Meus amigos me desejaram um feliz natal com aquele sorriso de sempre. Até o meu cachorro me desejou um feliz natal com o mesmo sorriso. Desta vez vou suspender o juízo.
Não há nada que eu preze mais do que sorrisos.


"Papai Noel às Avessas

Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.

Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças
Papai entrou compenetrado.

Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.

Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do aperto.

Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papa conti Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.

Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.

Carlos Drummond de Andrade"


Este poema foi publicado no livro "Alguma Poesia", Editora Pindorama, em1930, primeiro livro do autor. Texto extraído de "Nova Reunião", Livraria José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1983, pág. 24.


http://www.releituras.com/index_natal2005.asp

22.12.05

Hoje em dia os costumes mudaram, e lhes parecerá inconcebível que se possa enamorar assim de uma qualquer, sem ter convivido com ela. No entanto, graças àquela solução inconfundivelmente sua que permanecia na àgua marinha e que as ondas punham à minha disposição, recebia uma quantidade de informações sobre ela que vocês nem podem imaginar! Não as informações superficiais e genéricas que agora se obtêm ao ver, ao cheirar, ao tocar ou ao ouvir a voz, mas informações sobre o essencial, com as quais podia depois trabalhar demoradamente usando a imaginação. Podia imaginá-la com uma precisão minuciosa, e não tanto pensar em como era feita, o que seria um modo banal e grosseiro de imaginá-la, mas imaginar como, não tendo forma, ela seria se, transformada, adquirisse umas das infinitas formas possíveis, permanecendo, porém, sempre ela mesma. Ou seja, não que imaginasse as formas que ela teria podido adquirir, antes imaginava a qualidade particular que ela, adquirindo-a, teria dado àquelas formas.

Trecho do capítulo ou conto, sei lá!, A espiral que está no livro As cosmicômicas de Italo Calvino.

17.12.05

Você é tão linda quanto! As espirais de seus cabelos assim como sua pele branca vocês partilham. E seus nomes começam com mesma letra, Ah... Mas por que não lhe peço para brincarmos na chuva? Poderia até ficar melhor com você, vai saber... Ela é muito complicada e eu também. Ela se diz uma pessoa má e eu sou pior do que ela. Ela dissimula muito bem e eu não sei mais quando não estou fazendo esse tipo de coisa. Ela odiou quando eu disse a ela essas coisas e eu fiz com que as verdades que ela me disse fossem devaneios de uma pessoa rasa. Sabe, eu não tenho a mínima idéia do que me levou num dado momento dizer: “eu a amo!”. Por que não antes ou depois? Teria feito alguma diferença se tivesse sido antes? Ou as coisas se deram assim por que demorei a dizer? “...” Eu sei que estamos conversando mas não quero que me diga algo do gênero de: “o mundo está cheio de pessoas bacanas”, “fulano de tal diz: ...”, “para curar a dor de um antiga paixão nada melhor que a dor de nova paixão”. Hoje, quero apenas que me escute. Não vou lhe perguntar sobre a sua nova peça ou sobre como você está se virando. Perdoe-me, é com ela que gostaria de estar agora. É naquela mesa que está queimando que me olhou pela última vez, durante uma tragada. Não se preocupe, não há perigo da nossa mesa queimar, a grama está muito verde e veja quantas borboletas. Amigo, me vê uma daquela curtida! Pergunto sempre se ela pensa em tais coisas. Pergunto se pode escutar o nosso monólogo. É quase certo que não. Não me pergunte por que escrever já que resulta pouco, você é bem mais aberta à vida do que eu. Tem razão quando me diz que se deve dizer o que sente e o que se quer.
Eis o que quero:

"El poeta pide a su amor que le escriba

Amor de mis entrañas, viva muerte,
en vano espero tu palabra escrita,
y pienso, con la flor que se marchita,
que si vivo sin mí quiero perderte.

El aire es inmortal. La piedra inerte
ni conoce la sombra ni la evita.
Corazón interior no necesita
la miel helada que la luna vierte.

Pero yo te sufrí. Rasgué mis venas,
tigre y paloma, sobre tu cintura
en duelo de mordiscos y azucenas.

Llena, pues, de palabras mi locura
o déjame vivir en mi serena
noche del alma para siempre oscura.

Frederico García Lorca"


O cidadão está mexendo no rádio, deve querer outra música. “Quando a gente ama qualquer coisa serve para relembrar...”. Faz tanto tempo que eu não escuto essa música e nem alguém que assovie tão bem quanto o camarada que a acompanha. Há um nível em que tanto os ordinários quantos os ditos extraordinários estão. É o chão. E isso é inegociável. Você sabe que eu não estou falando de onde pisamos.

Que belas rosas! Você aceita uma? Esta criança sempre espera a chuva passar aqui debaixo e ofecere as suas flores aos que enchem a cara. Olho para o seu rosto manchado e sinto pena. É trágico quando uma criança suplica por amor e cômico quando é um adulto. Duvido muito que ela queira o nosso, qualquer um que nos olhar verá que somos secos, é nosso dinheiro que ela quer, mais nada. Conhece mais deste mundo do que nós e com certeza já deve ter lidado com pessoas muito piores. Aqui só há bobos. Compro a sua flor se estregá-la àquela señorita. Ela está ali, é só seguir os meus olhos, é a única que quero ver.

10.12.05

Lancei-me alegremente à sua conquista e todos os dias à ela ergo um monumento deformado e belo. Como não dizer coisas belas do que é belo, o que nos fazem invariavelmente belos?
A ela fiz uma proposta: vamos sujar nossos pés no monte de terra vermelha que as caçambas despejam diariamente, aquilo que insistem em chamar de rejeito*. Vamos brincar como as outras crianças.
Aguardo a resposta.


* o que sobra da planificação primeira que é necessária para erguerem as suas vidas sem desníveis e sem trincas, e assim alcançarem a perfeição pela precisão, por via de fórmulas testadas e impessoais.
Na última quarta, numa mesa vermelha da cantina gasta,
um amigo, à minha esquerda, perguntou-me:
"Por que olha lá para o terceiro andar ?"

Talvez não perguntasse se percebesse
a minha súbita alegria



"Por não estarem distraídos

Havia a levíssima embriaguez de andarem juntos, a alegria como quando se sente a garganta um pouco seca e se vê que, por admiração, se estava de boca entreaberta: eles respiravam de antemão o ar que estava à frente, e ter esta sede era a própria água deles. Andavam por ruas e ruas falando e rindo, falavam e riam para dar matéria peso à levíssima embriaguez que era a alegria da sede deles. Por causa de carros e pessoas, às vezes eles se tocavam, e ao toque - a sede é a graça, mas as águas são uma beleza de escuras - e ao toque brilhava o brilho da água deles, a boca ficando um pouco mais seca de admiração. Como eles admiravam estarem juntos! Até que tudo se transformou em não. Tudo se transformou em não quando eles quiseram essa mesma alegria deles. Então a grande dança dos erros. O cerimonial das palavras desacertadas. Ele procurava e não via, ela não via que ele não vira, ela que, estava ali, no entanto. No entanto ele que estava ali. Tudo errou, e havia a grande poeira das ruas, e quanto mais erravam, mais com aspereza queriam, sem um sorriso. Tudo só porque tinham prestado atenção, só porque não estavam bastante distraídos. Só porque, de súbito exigentes e duros, quiseram ter o que já tinham. Tudo porque quiseram dar um nome; porque quiseram ser, eles que eram. Foram então aprender que, não se estando distraído, o telefone não toca, e é preciso sair de casa para que a carta chegue, e quando o telefone finalmente toca, o deserto da espera já cortou os fios. Tudo, tudo por não estarem mais distraídos.

Clarice Lispector"

9.12.05

Normal Size 12

Da fonte Arial tamanho Normal size 12 para traços irregulares de uma mão divertidamente trêmula. O passo para superar a virtualidade.

8.12.05

O infradesespero

Há um tipo provisório de desespero - mais que impaciência menos que angústia - que ocorre dentro mesmo e à revelia do grande desespero do qual seria uma partícula necrosada capaz de invadi-lo subitamente - e que pode ser conjurado por agentes físicos e acontecimentos exteriores à alma: a chegada de uma carta, a ingestão de um alcalóide, um telefonema, o acender de uma lâmpada, a aparição de uma mulher... É mal-estar, porém - sem maior significação e removível mediante pequenos acasos e expedientes pueris -, pode levar inopinadamente ao suicídio, transformando-se em fatalidade do destino. É presiço opor-lhe sempre os nossos recursos de cá.
- Recursos de cá?
- Tudo o que, vago e indecifrado, ainda seja deste mundo... todas as forças, presenças e relações que constituem o nosso eu quotidiano desligado de suas raízes transcendentes, e à margem do divino perdido...

Aníbal M. Machado, mas poderia ser meu ou nosso

4.12.05

Ainda sobre o amor - João Ivo

Nemorino não é tão realista (ou,... pessimista?) como luciano:
NEMORINO 
Cara Adina!... Non poss'io.

ADINA
Tu nol puoi? Perché?

NEMORINO
Perché!
Chiedi al rio perché gemente
dalla balza ov'ebbe vita
corre al mar, che a sé l'invita,
e nel mar sen va a morir:
ti dirà che lo strascina
un poter che non sa dir.

ADINA
Dunque vuoi?...

NEMORINO
Morir com'esso, ma morir seguendo te.

ADINA
Ama altrove: è a te concesso.

NEMORINO
Ah! possibile non è.

ADINA
Per guarir da tal pazzia,
ché è pazzia l'amor costante,
dèi seguir l'usanza mia,
ogni dì cambiar d'amante.
Come chiodo scaccia chiodo,
così amor discaccia amor.
In tal guisa io rido e godo,
in tal guisa ho sciolto il cor.

NEMORINO
Ah! te sola io vedo, io sento
giorno e notte e in ogni oggetto:
d'obbliarti in vano io tento,
il tuo viso ho sculto in petto...
col cambiarsi qual tu fai,
può cambiarsi ogn'altro amor.
Ma non può, non può giammai
il primiero uscir dal cor.

(partono)

NEMORINO
¡Querida Adina!... No puedo.

ADINA
¿No puedes? ¿Por qué?

NEMORINO
¡Por qué!
Pregúntale al río por qué
desde la gruta en donde nace
se dirige raudo hasta el mar
y en el seno del mar muere;
te dirá que está hechizado
por un poder que no sabrá decirte.

ADINA
¿Entonces quieres?...

NEMORINO
¡Morir como él, morir siguiéndote!

ADINA
Ama a otra: nadie te lo impide.

NEMORINO
¡Ah! No es posible...

ADINA
Para sanar de esa locura,
pues locura es el amor constante,
debes seguir mi ejemplo
y cambiar cada día de amante.
Como un clavo saca otro clavo,
así el amor aleja al amor.
De esta manera yo disfruto,
de esta manera tengo libre el corazón.

NEMORINO
¡Ah! En cada objeto
que esta a mi vista,
te veo, te siento solo a ti:
en vano intento olvidarte,
tu rostro grabado está en mi pecho...
Cambiando como tú haces,
puede cambiarse cualquier otro amor,
pero jamás podré borrarte de mi corazón.

(salen)

Só para romper um pouco com esse lirismo e a vulgaridade que me acomentem ultimamente vamos de Nitx que o João disse que não é viado.

- Considera-se uma mulher profunda - Por quê?, porque nela jamais chega-se ao fundo. A mulher não é nem sequer superficial.

- Como nos devemos petrificar - Endurecer lenta, lentamente, como uma pedra preciosa - e acabar por ficar aí tranquilo, para o gozo da eternidade.

- Remedium amores - Na maior parte dos casos, o que ainda de mais eficaz contra uma amor é o velho remédio radical: o amor partilhado.

- Uma mulher que prossegue uma vingança venceria o próprio destino. A mulher é indiscutivelmente mais má que o homem e mais calculada; a bondade é nela forma de degenerescência.

- Quanto mais uma mulher for verdadeiramente mulher, tanto mais se defenderá com pés e mãos dos direitos em geral: o estado de natureza, a eterna gerra entre os sexos, assinala-lhe, sem embargo possível, o primeiro lugar. Atendeu-se à minha definição do amor? É a única digna de um filósofo. "Em relação aos meios, o amor é guerra; no seu fundamento, ódio mortal entre os sexos". Atendeu-se à minha resposta à pergunta sobre a maneira como se cura, como se "salva" uma mulher? " Faça-se-lhe um filho. A mulher precisa de filhos, o homem é apenas meio". assim falou Zaratustra.

- Como se reconhece o mais ardente - De duas pessoas que lutam conjutamente, ou se ama, ou se admiram, a mais ardente escolhe sempre a posição mais desconfortável. Isto vale igualmente para os povos.

- De nenhuma outra leitura sei que, como a de Shakespeare, despedace o coração: quando deve ter sofrido aquele homem para se sentir de tal maneira a necessidade de ser bobo!

- Os sexos enganam-se mutuamente: e isso porque no fundo só estimam a si próprios (ou o seu próprio ideal, para me exprimir de um modo mais amável). Assim, o homem quer que a mulher seja, pacífica, mas precisamente a mulher é essencialmente conflituosa como uma gata, por mais habilidades que tenha em dar-se aparências pacíficas.

- Inimigo das mulheres - " A mulher é nossa inimiga" - pela voz daquele que, enquanto homem, fala assim aos homens, exprime-se o instinto indomado, que não somente se odeia a si próprio mas também odeia os seus meios.

3.12.05

Como se escreve uma carta para a pessoa amada?
Sem imperativos, pedidos, justificativas ou explicações. Deve-se, unicamente, descrever o que há.
Não pergunte para que serve uma coisa dessa ou sobre o que se pode esperar.
No mínimo, não terá o arrependimento de nunca ter dito que a ama.

29.11.05

"A ti, amada, te confunde esta mezcla heterogénea
y abundante de flores que hay por todo el jardín:
muchos nombres oyes, y el extraño sonido de uno de ellos
suplanta en tu oído al anterior.
Todas las formas se parecen, y ninguma se asemeja a la otra;
de este modo alude el coro a un secreta ley,
a un misterio sagrado.
¡Oh, si yo pudiera, dulce amiga,
revelártelo ahora mismo pronunciando una palavra!
Contempla el desarollo de una planta, poco a poco
y por etapas se transforma en flor y fruto..."

Goethe

27.11.05

Não queira ver o teu rosto agora, o vento o deforma
A quanto tempo estamos caindo?
A alguns segundos e já é muito
Passou outra coisa e você não a pegou, não quer parar de cair?
Não é naquele mundo que quero ficar
Logo nos arrebentaremos no chão
Concordamos em pular e ficarmos calados
Não, foi você que deu o passo. Disse que tava com febre e queria tomar um ar
Chegamos, não foi tão ruim, foi?
Com uma cama tão grande, pulo de novo
Lá vem ela com a sopa de letras, já faz cinco dias que a espero
Como sabe, nunca viu uma sopa de letras
Sei porque é com isso que ela me alimenta

26.11.05

Segue a citação:

"É peculiar o modo trágico desses senhores selarem suas fantasias com meia dúzia de palavras rebeldes somente para se verem livres de suas particulares misérias."
"O olhar que procura atentamente e só procura, procura, procura..."
"O último refúgio de um suicida são cartas, nelas é capaz de até dizer que ama sem ter a certeza de que serão lidas. E se lidas, não terá sequer a certeza de serem compreendidas já que se suicida por não saber dizê-las."

Na verdade só a primeira é uma citação, no uso curriqueiro da palavra.
As duas seguintes são minhas. Usei as aspas para dar autoridade a algo que achei bacana e para sugerir que sempre existe alguém que escreve o que se quer ouvir. Aspas mexem com a imaginação.

23.11.05

Interessante, só eu embarquei! Mas eu não dei o sinal. Dificilmente eu o daria sem perguntar, a outra pessoa que estivesse no ponto, qual o melhor ônibus para mim, já que eu não conheço nenhum neste lugar. Só consegui identificar o destino deste, numa placa fixada na dianteira, quando já passava por mim e foi por isso que corri atrás para pegá-lo, a uns metros à frente, sem entender por que parou. Mas como entender, se só eu e aquele velho estávamos no ponto, e ele mais preocupado em chupar a laranja do que observar os ônibus? Por que o motorista pararia sem ao menos eu sinalizar? Será que eu o conheço? Não, não o reconheço. Será que ele me conhece? Mesmo que conhecesse, o que não é o caso, não poderia saber para onde eu ia, nunca fui daqui para lá; para falar a verdade, nunca vim para estes lados antes. E o trocador, poderia ter dito algo se não estivesse tão preocupado em jogar conversa fora com aquela menina, ao mesmo tempo que ela lhe mostrava os seus cadernos? Engraçado, o motorista parou novamente sem que o homem que sentou lá na frente desse algum sinal e parece que também não se conheciam. Mas não é isto o que ocorreu? Ele parava nos pontos onde as pessoas não deram o sinal e aguardava até que um indeciso ou alguém com atenção dispersa entrasse; por incrível que pareça, sempre alguém entrava. Parece que sabe que estão lá, como se pudesse ver nos olhos das pessoas o que esperam! Ou talvez seja a experiência de um motorista treinado, ao ponto de saber que estará em um ponto um jovem que nunca lá esteve, e que provavelmente nunca o viu, e um velho sem vontade de sair do lugar, pelo menos enquanto saboreia a sua laranja - provavelmente comprada no carrinho perto do pronto-socorro. E se fosse um motorista gentil, o que é raro? Normalmente motoristas cortam pela esquerda em alta velocidade, quando ninguém acena antes do ônibus chegar ao ponto. Ele não deu um arranco sequer, sempre manteve a mesma baixa velocidade e sem sair da sua faixa, respeitou todos os cruzamentos, esperou que cada passageiro descesse com calma. Louvável, mas demorado; tenho pressa, muita pressa. Tudo bem quanto a ser o bom motorista, do tipo que segue as normas, mas só preciso dele quando estou na faixa de pedestre. “Tira o pé do meu almoço motor...”; o cidadão do banco de trás reclama impaciente o que eu gostaria de já ter dito. Imagino que todos estranhavam e condenavam os cuidados do motorista com os que estão dentro e fora do carro; uma senhora apertava o terço junto ao queixo como se observasse uma malcriação, resmungando com a boca murcha. Melhor, todos menos um: a moça de cabelos cacheados olhava pela janela como se não estivesse lá, a dois bancos pro fundo na fileira oposta; seu olhar parecia-me tão calmo... quis tê-los; e quem não os desejaria? Quando a vi percebi que estava próximo do destino. Minha pressa se misturou com o incômodo e vontade de seguir a viajem até o fim para ver aonde isso vai dar. “Malditos compromissos! Até pouco tempo não precisava seguí-los, mas agora... merda!” Não podia ficar e nem descer sem compreender o que está ocorrendo. Tinha que lhe perguntar qualquer coisa para não ficar a perscrutar possibilidades; não podia esperar, estava na hora de descer. “Me desculpa, tenho que falar com o motorista. Vou pular a roleta e descer pela frente, tranqüilo?” Dei um passo longo, sem me importar com o que o rapaz disse, dirigindo-me para o único objeto da minha atenção. O barulho do motor velho abafou a minha voz quando o chamei, aí falei mais alto: “motorista!” Ele já tinha me percebido, e virou para mim com os seus olhos vermelhos de cansaço e espremidos. Quando encontrou o meu rosto, depois de tateá-lo com a vista meio cerrada, levantou as sobrancelhas enrugando toda a testa encardida como se me pedisse a questão já em parte respondida. Eu precisava chamar pelo nome “este” motorista que me descentrou por alguns minutos das banalidades que ordinariamente me ocupam, e ao procurá-lo, no seu crachá, vi o mesmo óculos de lentes fundas que estão quebradas, sobre uma flanela desbotada, largada no canto perto do acelerador. Antes de se formar um pequeno sorriso no canto da minha boca junto ao desapontamento, por mais uma vez não encontrar o que deveria ser, ou melhor, de ser só isto, olhei para trás e vi a moça de cabelos cacheados me olhando, como se ela já soubesse.

21.11.05

Sobre os Personagens Conceituais

II - "Foi assim que há tempos, quando necessitei, inventei para mim os 'espíritos livres', aos quais é dedicado este livro melancólico-brioso que tem o título de Humano, demasiado humano: não existem esses 'espíritos livres', nunca existiram - mas naquele tempo, como disse, eu precisava deles como companhia, para manter a alma alegre em meio a muitos males (doença, solidão, exílio, acedia, inatividade): como valentes confrades fantasmas, com os quais proseamos e rimos, quando disso temos vontade, e que mandamos para o inferno, quando se tornam entediantes - uma compensação para os amigos que faltam. Que um dia poderão existir tais espíritos livres, que a nossa Europa terá esses colegas ágeis e audazes entre os seus filhos de amanhã, em carne e osso palpáveis, e não apenas, como para mim, em forma de espectros e sombras de um eremita: disso serei o último a duvidar. Já os vejo que aparecem, gradual e lentamente; e talvez eu contribua para apressar sua vinda, se descrever de antemão sob que fados os vejo nascer, por quais caminhos aparecer"
IV - "Desse isolamento doentio, do deserto desses anos de experimento, é ainda longo o caminho até a enorme e transbordante certeza e saúde, que não pode dispensar a própria doença como meio e anzol para o conhecimento, até a madura liberdade do espírito, que é também autodomínio e disciplina do coração e permite o acesso a modos de pensar numerosos e contrários - até a amplidão e refinamento anterior que vem da abundância, que exclui o perigo de que o espírito porventura se perca e se apaixone pelos próprios caminhos e fique inebriado em algum canto; até o excesso de forças plásticas, curativas, reconstrutoras e restauradoras, que é precisamente a marca da grande saúde, o excesso que dá ao espírito livre o perigoso privilégio de poder viver por experiência e oferecer-se à aventura: o privilégio de mestre do espírito livre! No entremeio podem estar longos anos de convalescença, anos plenos de transformações multicores, dolorosamente mágicas, dominadas e conduzidas por uma tenaz vontade de saúde, que freqüentemente ousa vestir-se e travestir-se de saúde. Há um estado intermediário, de que um homem com esse destino não se lembrará depois sem emoção: uma pálida, refinada felicidade de luz e sol que lhe é peculiar, uma sensação de liberdade de pássaro, de horizonte e altivez de pássaro, um terceiro termo, no qual curiosidade e suave desprezo se uniram. Um 'espírito livre' - esta fria expressão faz bem nesse estado, aquece quase. Assim se vive, não mais nos grilhões de amor e ódio, sem Sim, sem Não, voluntariamente próximo, voluntariamente longe, de preferência escapando, evitando, esvoaçando, outra vez além, novamente para o alto; esse homem é exigente, mal-acostumado, como todo aquele que viu abaixo de si uma multiplicidade imensa - torna-se o exato oposto dos que se ocupam de coisas que não lhes dizem respeito. De fato, ao espírito livre dizem respeito, de ora em diante, somente coisas - e quantas coisas! - que não mais o preocupam..."
V - "Um passo adiante na convalescença: e o espírito livre se aproxima novamente à vida, lentamente, sem dúvida, e relutante, um tanto desconfiado. Em sua volta há mais calor, mais dourado talvez; sentimento e simpatia se tornam profundos, todos os ventos tépidos passam sobre ele. É como se apenas hoje tivesse olhos para o que é próximo. Admira-se e fica em silêncio: onde estava então? Essas coisas vizinhas e próximas: como lhe parecem mudadas! de que magia e plumagem se revestiral! Ele olha agradecido para trás - agradecido a suas andanças, a sua dureza e alienação de si, a seus olhares distantes e vôos de pássaro em frias alturas. Como foi bom não ter ficado 'em casa', 'sob seu teto', como um delicado e embotado inútil! Ele estava fora de si: não há dúvida. Somente agora vê a si mesmo - e que surpresas não encontra! Que arrepios inusitados! Que felicidade mesmo no cansaço, na velha doença, nas recaídas do convalescente! Quem, como ele, compreende a felicidade do inverno, as manchas de sol no muro? São os mais agradecidos animais do mundo, e também os mais modestos, esses convalescentes e lagartos que de novo se voltam para a vida: - há entre eles os que não deixam passar o dia sem lhe pregar um hino de louvor à orla do manto que se vai. E, falando seriamente: é uma cura radical para todo pessimismo (o câncer dos velhos idealistas e heróis da mentira, como se sabe -) ficar doente à maneira desses espíritos livres, permanecer doente por um bom período e depois, durante mais tempo, durante muito tempo tornar-se sadio, quero dizer, 'mais sadio'. Há sabedoria nisso, sabedoria de vida, em receitar para si mesmo a saúde em pequenas doses e muito lentamente"

20.11.05


HISTÓRIA DO OLHO (trecho)
Georges Bataille

"(...)
Apavorado, o padre levantou-se, mas o inglês torceu-lhe um braço e jogou-o novamente nas lajes.
Sir Edmond amarrou-lhe os braços atrás das costas. Eu amordacei-o e atei-lhe as pernas com o meu cinto. Depois que ele foi parar no chão, estendido, o inglês segurou-lhe os braços, comprimindo-os em suas mãos. Imobilizou-lhe as pernas envolvendo-as com as suas. De joelhos, eu mantinha a cabeça entre as coxas.
O inglês disse a Simone:
- Agora, trepa nesse rato de sacristia.
Simone tirou o vestido. Sentou-se sobre o ventre do mártir, com a boceta perto do cacete mole.
O inglês continuou, falando sob o corpo da vítima:
- Agora, aperta-lhe a garganta, um canal mesmo por trás da maçã de Adão: uma forte pressão gradual.
Simone apertou: um tremor crispou o corpo imobilizado, e o pau ergueu-se. Agarrei-o e introduzi-o na carne de Simone. Ela continuava apertando a garganta.
Violentamente, a moça, ébria até o sangue, remexia, num movimento de vaivém, o pau retesado no interior de sua vulva. Os músculos do padre ficaram tensos.
Por fim ela apertou tão decididamente que um violento arrepio fez estremecer o moribundo: ela sentiu a porra inundá-la. Então largou a garganta e caiu, derrubada por uma tempestade de prazer.
Simone permanecia estendida sobre as lajes, de barriga para o ar, com o esperma do morto escorrendo pelas coxas. Estendi-me para fodê-la também. Estava paralisado. Um excesso de amor e a morte do miserável tinham-me esgotado. Nunca me senti tão feliz. Limitei-me a beijar a boca de Simone.
A jovem teve vontade de ver a sua obra e afastou-me para se levantar. Trepou novamente, de cu pelado sobre o cadáver pelado. Examinou o rosto, limpou o suor da testa. Uma mosca, zumbindo num raio de sol, voltava incessantemente para pousar sobre o morto. Ela enxotou-a porém e de repente aconteceu algo estranho: pousada sobre o olho do morto, a mosca deslocava-se sobre o globo vítreo. Agarrando a própria cabeça com as mãos, Simone sacudiu-a, tremendo. Vi-a mergulhar num abismo de pensamentos.
Por mais estranho que possa parecer, nós não nos tínhamos preocupado com o modo como essa história pudesse acabar. Se algum intrometido tivesse surgido, nós não teríamos deixado que manifestasse a sua indignação durante muito tempo... Mas não importa. Simone, saindo de seu embrutecimento, levantou-se e aproximou-se de Sir Edmond que se encostara a uma parede. Ouvia-se a mosca voar.
- Sir Edmond, disse Simone, grudando seu rosto contra o ombro do inglês, você vai fazer o que eu lhe pedir?
- Vou... provavelmente, respondeu o inglês.
Ela me levou até ao lado do morto e, ajoelhando-se, levantou a pálpebra e abriu inteiramente o olho sobre o qual a mosca tinha pousado.
- Você está vendo o olho?
- E daí?
- É um ovo, disse ela, com toda a simplicidade.
Insisti, perturbado:
- Aonde você quer chegar?
- Quero me divertir com ele.
- E mais o quê?
Levantando-se, ela parecia afogueada (estava, então, terrivelmente nua).
- Escute, Sir Edmond, disse ela, quero que você me dê o olho já. Arranque-o.
Sir Edmond não estremeceu; pegou uma tesoura numa bolsa, ajoelhou-se, recortou as carnes e, em seguida, enfiando os dedos na órbita, retirou o olho, cortando os ligamentos estendidos. Colocou o pequeno globo branco na mão de sua amiga.
Ela olhou a extravagância, visivelmente constrangida, mas não hesitou. Acariciando as pernas, fez escorregar o olho sobre elas. A carícia do olho sobre a pele é de uma doçura excessiva... e produz um horrível som, como um grito de galo.
No entanto, Simone divertia-se, fazia o olho escorregar na racha das nádegas. Estendeu-se no chão, levantou as pernas e o cu. Tentou imobilizar o globo contraindo as nádegas, mas ele pulou como um caroço entre os dedos - e caiu sobre a barriga do morto.
O inglês tinha-me despido.
Joguei-me sobre a moça e a sua vulva engoliu o meu pau. Fodi-a: o inglês fez rebolar o olho entre nossos corpos.
- Enfie ele no meu cu, gritou Simone.
Sir Edmond introduziu o olho na fenda e empurrou.
Finalmente, Simone deixou-me, tirou o olho das mãos de Sir Edmond e introduziu-o em sua carne. Nesse momento, puxou-me contra ela e beijou o interior da minha boca de um modo tão ardente que o orgasmo me veio logo: minha porra espirrou nos seus pêlos.
Levantando-me, afastei as coxas de Simone: ela jazia no chão, estendida de lado. Encontrei-me então diante do que, imagino, eu esperara desde sempre, assim como uma guilhotina espera a cabeça que vai decepar. Os meus olhos pareciam-me eréteis de tanto horror; eu vi, na vulva peluda de Simone, o olho azul pálido de Marcela me olhar, chorando lágrimas de urina. Rastros de porra no pêlo fumegante conferiam a esse espetáculo uma dimensão de dolorosa tristeza. Mantinha as coxas de Simone afastadas: a urina ardente escorria por baixo do olho, sobre a coxa a poiada no chão... (...)"
(In Bataille, Georges. História do Olho, seguido de Madame Edwarda e O Morto. Editora Escrita, SP, 1981)

17.11.05

Esquece-se quando se deseja esquecer?
“Não posso esquecê-la” é sinônimo de “Não quero esquecê-la”?
“Não a esquecerei!” é uma decisão?
Esquecer é um ato de vontade?
Esquecemos de coisas todos os dias. Só nos damos conta quando a coisa por um motivo ou outro retorna.
“Leio o mesmo autor todos os dias, não adianta só compreendê-lo”; Idéias e coisas são objetos que estão no mesmo nível de pessoas?
“Paixões não duram para sempre, que sejam infinitas enquanto durem”; quantas temos em uma vida?
“Naquela casa morava um amigo que eu não lembrava”; se não visse a casa lembraria do amigo?
“Ainda penso em em você todos os dias, vem-me sem que eu passe pelos lugares onde a vejo”; as lembranças estão ligadas a lugares, objetos, coisas que se vêem?
“Isolar-se só lhe traz depressão, afastar-se não a afastará porque está dentro de ti”; mesmo longe das coisas comuns as lembranças se mantêm; a lembrança não só está ligada a determinadas coisas.
“Alguém perguntou o número do ônibus que leva para o bairro onde eu trabalhava. Sei onde é o ponto, mas não me lembro do número, não consigo. Faz só três anos que não vou lá. Mas e daí? Tenho mais o que fazer.” Podem surgir, todos os dias, novas coisas para serem feitas, novas rotinas, novas pessoas. Necessariamente abandona-se algumas pelo simples fato de não se ter tempo, o suficiente para se dedicar a todas. Abandona-se um caminho por circunstâncias que nos obrigam a seguir outros. Muda-se assim as paisagens a serem contempladas, coisas belas e ruins, que até então jamais imaginadas, são descobertas. O que não implica que devem ser necessariamente acolhidas. Esquece-se o número do ônibus, mas não se esquece dos amigos que fez onde trabalhava; o que faz essa pessoas persistirem na mente, como se lá habitassem?
“Naquela casa morava um amigo que eu não lembrava” e “Ainda penso em você todos os dias”; a diferença de freqüência e intensidade com que se lembra de alguém está relacionada com a sensação de falta? Além disso, cada ente lembrado está ligado a nossa história pessoal; são intrínsecos, a sua maneira, às nossas práticas de vida? Podemos ter consciência das práticas que norteiam nossas expectativas? Se não, esquecer depende pouco de nós; o pouco é a vontade que pouco age. Como se desvencilhar da opinião ordinária? Como conceber a possibilidade de sequer existir um tal desvencilhar e que há algo que deve ser discernido; que há ditos semelhantes, mas de ordens distintas?
“O idiota fica contente em vê-la, por isso a vê”; quanto aos móveis da vontade, explicação alguma os acalma.
Esquecer é ter indiferença?

14.11.05

Diálogo sobre o que pode nos exprimir.

- O que você pode me dizer sobre o olhar dela?
- Não sei... só sei que ela me olha. Sinto que há algo,
mas não sei o que é.
- Você sente mas não sabe... é como se você achasse
que sentir não é saber, e isso te deixa angustiado.
Espera decifrar a partir do seu olhar o que se passa
dentro dela, decompô-lo em palavras, e aí encontrar um
chamado, da mesma forma que espera que ela lhe
compreenda?
- Que ela me escreva, fale para mim ou venha pela
boca de outra pessoa, é só assim que suas palavras
chegarão até a mim, sei muito bem disto. Sei o que
quer dizer... mas observe de agora em diante como ela,
de vez em quando, olha para cá e sei disto porque
vejo. O que me diz?
- Talvez nada do que você esteja esperando.
- Como?
- Perceba como ela está conversando com a moça com
quem almoça. Estão conversando de forma aparentemente
amigável... gesticulam, sorriem uma para outra,
olham-se nos olhos... o que há entre elas?
- Mas é diferente!
- Por quê?! De quantas maneiras diferentes
conseguimos olhar? Um rosto agradável pode ser
agradável de quantas formas diferentes? ...Ou uma
feição concentrada, atenta em perceber olhares dos que
estão a volta, pode se diferenciar de uma feição
concentrada que observa uma encenação? ... Talvez ela
vê um paínel, uma coisa que desperta sutilmente suas
emoções, seus desejos... e você sabe do que estou
falando... ou nada disso, apenas um rosto de uma
pessoa habituada a ser gentil para com os que com ela
cruzam todos os dias. Amizade, paixão, compaixão,
gentilezas, uma encenação de um bom ator, que por mais
que incorpore seu personagem jamais o será, requerem
diferentes sorrisos verdadeiros?
- Mas não pode ser desta forma! Vi ela numa sala de
projeção, dentro de um grande teatro, acompanhada de
uma amiga, e ela me observava de uma forma tão, tão...
Não sei se era o lugar ou coisa da minha cabeça mais
era um sorriso tão doce, tão...
- Natural, belo, cativante, capaz de despertar coisas
que não podem ser ditas, que nos fazem sentir nossa
finitude, que nos fazem perceber o quanto as palavras
são miseráveis... Você quer me dizer, ou melhor, para
ser coerente comigo mesmo, imagino que queira dizer
que ela gosta de você?
- Sim e é o que mais quero... que goste de mim.
Sabe... é tão real, não é uma loucura da minha cabeça
achar que ela gosta de mim, alias é o que eu acredito
a um bom tempo. Ela olha é nos meus olhos e sei bem o
que sinto! Como pode dizer que o olhar não serve para
me indicar o que quer, que é no final das coisas
inútil e o que sinto não é legítimo, COMO?!
- Claro que é legítimo, é real, verdadeiro e justo
porque é você que sente, você que o vive e é ele que
te permite viver. Viver o que te permite viver...
poético, não! Então me diga, se eu nunca tivesse a
visto ou, como dizem, nunca tivesse ouvido falar de
amor, como poderia amar? Tal coisa, da maneira que é,
poderia existir sem ela? Eu poderia deseja qualquer
outra pessoa que seja com a mesma intensidade?
- Nisso você tem razão, só se pode querer algo quando
o frio abraça a nossa pele... e sem isto nossa morte
poderia ser até mais digna. Quando a viu pela primeira
vez?
- Ao uns três anos ao mais. Sentei ao seu lado numa
sala aula, num curso preparatório para o vestibular,
sem a perceber de imediato. Freqüentamos esta mesma
sala durante uns poucos dias, não me lembro bem, e
depois só a vi novamente aqui. Trocamos poucos
olhares, mais suficientes para que me apaixonasse, mas
não pude me aproximar porque meus pés ainda tentava
sentir um chão que já não existia, estava preso a um
relacionamento já condenado ao fim.
Já esperava encontrá-la por aqui, mas não a
procurava. Como já tinha acontecido outras vezes...
quero dizer... não foi uma coisa consciente sustentar
a esperança de revê-la, de tê-la, no entanto, quanto a
aceitar o que havia de concreto nessa história, nunca
foi um problema: não há nada que me ligava a ela e que
fosse suficiente para garantir o meu delírio, eu só
podia acreditar que aqueles rápidos e tímidos
instantes não teriam sido em vão, um nada... Um dia eu
estava lá no segundo andar quando uma moça olhou para
mim rapidamente e passou por mim mais rápido ainda. -
Era ela? - Sim, e novamente não a percebi de primeira.
Comecei a procurá-la. Na verdade a partir daí passei a
vê-la por todos os lugares, em todos os lugares por
onde supunha ser um lugar comum a nós, e era sempre
onde eu estava, e isto não era suficiente. Também
comecei a procurá-la em todas as mulheres, todas eram
uma promessa: altas, morenas, com grandes e belos
olhos e cabelos castanhos. Até hoje é assim, é uma
eterna vigília...
- Então isto não é de agora, é muito mais do que
simples gestos. Há tanta coisa por trás que jamais
poderia saber se não me contasse, além de me levar a
crer que cada vez mais que estou, como todos os
demais, cada vez mais distante de afirmar qualquer
coisa sobre o que for que seja. Posso estar me
contradizendo neste momento, mas tenho que lhe dizer
que me relatou apenas representações de
representações; não sei ao certo qual o nome dar e se
fará alguma diferença. Tudo que eu disser sobre será
apenas julgamento, e é só o que as palavras me
permite.
- Não sei se fico feliz com o que me diz, porque não
sei o que posso dizer sobre ela. Além de tudo continuo
na mesma: sem ela e sentindo a sua falta, falta do que
nunca tive. Daí posso achar que realmente é apenas um
delírio, uma idealização.
- Sabe ao menos o seu nome?
- Um amigo me dirá que é Carine. Sempre aparece
alguém que nos diz o que é.
- Mas Carine, de onde vem sua certeza?
- Não tenho certeza, quero apenas acreditar. Mas se
eu tiver certo, não adianta argumentar contra o fato.
Para nós como para os que já a conhecem e para todos
que vierem a conhecê-la e mesmo para os que nunca a
conhecerão ela continuará a se chamar Carine. Por
causa de Carine nosso almoço esfriou. Por causa de
Carine alterei várias vezes o meu percurso para cá.
Por causa de Carine escrevi linhas e mais linhas. Por
causa de Carine todos que a conheceram e a
idealizaram, deixaram de fazer algo para se ocuparem
dela por um momento, por menor que seja. E se
aceitarmos que o que nos faz é que fazemos, Carine
está na nossa carne.
- Não diria tal coisa se não soubesse o seu nome, se
não o tivesse descoberto. Não poderei duvidar de você
se me disser que descobriu o nome dela instantes antes
de abrir a boca para dizê-lo. Mas tem uma coisa na
qual não discordo: Carine está em nossa carne. Na
minha está esta moça que vejo na minha frente e que
pouco tempo atrás nem seu nome sabia. Na sua carne
está Carine, esta mulher que pelo tom de sua voz e por
tudo que já me disse é muito mais do que os meus do
que posso ver. No entanto, apesar de tão diferente ser
o que vemos, e me valendo de suas palavras, existe
algo em comum; para nós, a sua moça, Carine, sempre
será “esta”. Não a conhecemos para além do que podemos
ver; quem ela é para além de sua beleza e olhares? O
que sabe de sua vida? Muito pouco, praticamente nada.
Se ela tiver um companheiro ou, ainda, não tiver
pretensão alguma de estar com você? Ou se ela não for
nada, absolutamente nada, do que pensa?
A qualquer momento ela irá embora e esta conversa irá
continuar, continuar... Amanhã irá lembrar de nossa
conversa e dela lhe sorrindo, e depois de amanhã irá
se lembrar novamente de tudo o que não foi dito a ela,
e depois irá se apaixonar novamente por outra pessoa e
aquele mundo se fechará de vez, e talvez venha se
perguntar algum dia em que poderia ter dado se você
tivesse se levantado, interrompendo-me, e ido até a
sua mesa e dito apenas que é linda e queria estar com
ela de hoje em diante. O que está fazendo?!
- Vou até lá!
- Sente-se! Ela já se foi.

13.11.05

O Idiota

"O idiota é o pensador privado por oposição ao
professor público (o escolástico): o professor não
cessa de remeter a conceitos ensinados (o homem-animal
racional), enquanto o pensador privado forma um
conceito com forças inatas que cada um possui de
direito por sua conta (eu penso). Eis um tipo muito
estranho de personagem, aquele que quer pensar e que
pensa por si mesmo, pela "luz natural".
O idiota é um personagem conceitual. Podemos dar
mais precisão à questão: há precursores do cogito?
De onde vem o personagem do idiota, como ele apareceu,
seria numa atmosfera cristã, mas em reação contra a
organização "escolástica" do cristianismo, contra a
organização autoritária da Igreja? Encontra-se traços
dele já em Santo Agostinho? É Nicolau de Cusa quem lhe
dá pleno valor de personagem conceitual? É a razão
pela qual este filósofo estaria próximo do cogito, mas
sem poder ainda fazê-lo cristalizar como conceito. Em
todo caso, a história da filosofia deve passar pelo
estudo desses personagens, de suas mutações segundo os
planos, de sua variedade segundo os conceitos. E a
filosofia não pára de fazer viver personagens
conceituais, de lhes dar vida.
O idiota reaparecerá numa outra época, numa outro
contexto, ainda cristão, mas russo. Tornando-se
eslavo, o idiota permaneceu o singular ou o pensador
privado, mas mudou de singularidade. É Chestov que
encontra em Dostoievski a potência de uma nova
oposição do pensador privado e do professro público. O
antigo idiota queria evidências, às quais ele chegaria
por si mesmo: nessa expectativa, duvidaria de tudo,
mesmo de 3+2=5; colocaria em dúvida todas as verdades
da Natureza. O novo idiota não quer, de maneira
alguma, evidências, não se "resignará" jamais a que
3+2=5, ele quer o absurdo - não é a mesma imagem do
pesamento. O antigo idiota queria o verdadeiro, mas o
novo quer fazer do absurdo a mais alta potência do
pensamento, isto é, criar. O antigo idiota queria não
prestar contas senão à razão, mas o novo idiota, mais
próxinmo de Jó que de Socrátes, quer que se lhe preste
contas de "cada vítima da história", não são os mesmos
conceitos. Ele não aceitará jamais as verdades da
história. O antigo idiota queria dar-se conta, por si
mesmo, do que era compreensível ou não, razoável ou
não, perdido ou salvo, mas o novo idiota quer que lhe
devolvam o perdido, o incompreensível, o absurdo.
Seguramente não é o mesmo personagem, houve uma
mutação. E, todavia, um fio tênue une os dois idiotas,
como se fosse necessário que o primeiro perdesse a
razão para que o segundo reencontrasse o que o outro
tinha perdido a princípio, ganhando-a. Descartes na
Rússia tornou-se louco?"

Deleuze e Guatarri, O que é a filosofia?

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.