4.11.06

“À noite saí a passear com o petiz. É preciso dizer-lhe que todas as noites, já antes, vínhamos passear por êste mesmo caminho, até aquela enorme pedra isolada, lá embaixo perto da sebe, onde começam os pastos comunais: um lugar deserto e encatador. Caminhávamos de mãos dadas, como de costume; uma mãozinha bem pequena, de dedos delgados, gelados, porque ele sofre do peito. “Pápotchka”, diz ele, “pápotchka” “Que há?”, pergunto-lhe (via seus olhos cintilarem). “Como te tratou êle, papai!” “Que fazer, Iliúchka?” “Não faças a pazes com ele, pápotchka, de modo nenhum. Os alunos dizem que ele te deu 10 rublos por isso.” “Não meu pequeno, por coisa alguma do mundo aceitaria dinheiro dêle, agora.” (Êle se pôs a tremer, agarrou minha mão nas suas, beijou-a.) “Pápotchka, provoca-o a um duelo, na escola eles me infernam dizendo que és um covarde, que não te baterás, mas que aceitarás dele 10 rublos.” “Não posso provocá-lo a duelo, Iliúchka”, respondo-lhe, e lhe expus brevemente o que acabo de dizer ao senhor a êste respeito. Êle me escutou. “Pápotchka”, diz ele, no entanto, “não faças as pazes com aquêle homem; quando eu crescer, eu mesmo o provocarei e o matarei!” Seus olhos brilhavam com um clarão intenso. Apesar de tudo, era pai dele e tornava-se necessário dizer-lhe uma palavra de verdade: “É um pecado”, expliquei eu, “matar seu próximo, mesmo em duelo.” “Pápotchka, eu o derrubarei, quando for grande, farei saltar seu sabre de suas mãos e me lançarei sobre ele, brandindo o meu, e lhe direi: poderia matar-te, mas perdôo-te!” Está vendo, senhor, está vendo que trabalho se operou na cabecinha dele, durante esses dois dias? Só fazia pensar na vingança com um sabre e deve ter falado disso no seu delírio. Quando voltou da escola, cruelmente batido, soube de tudo e, o senhor tem razão, não voltará mais lá. Fico sabendo que êle se levanta contra a classe inteira, que provoca a todos; está exasperado, seu coração arde de ódio e então tenho medo por ele. Voltamos a passear. “Pápotchka”, diz ele, “ficarei rico, serei oficial e baterei todos os inimigos, o czar me recompensará, voltarei para junto de ti e então ninguém ousará...” Após um silêncio, continuou, com os lábios trêmulos como antes: “Pápotchka, que cidade de gente ruim essa nossa!” “Sim, Iliúchka, é uma cidade de gente ruim.” “Pápotchka, vamos morar em outra, onde não nos conheçam.” “Gostaria bem, Iliúchka, mudemo-nos; sòmente é preciso juntar dinheiro.” Rejubilo-me por poder assim distraí-lo de seus sombrios pensamentos; pusemo-nos a fazer projetos sobre a instalação numa outra cidade, a compra de um cavalo e de uma tieliega. “A mamãe e as manas montariam nela, nós as cobriríamos bem, nós mesmos caminharíamos ao lado, tu montarias de vez em quando, enquanto eu iria a pé, porque é preciso poupar o cavalo, todos não poderão ir ao mesmo tempo, seria assim que viajaríamos.” Ficou encantado, sobretudo por ter um cavalo o conduziria. Sabe-se que um menino russo não vê nada de mais belo que um cavalo. Nós tagarelamos muito tempo. “Deus seja louvado”, pensei eu, “distraí-o e consolei-o.” Foi anteontem de noite; no dia seguinte, voltou da escola bastante sombrio. À noite, por ocasião do passeio, permaneceu silencioso. O vento elevou-se, o sol desapareceu, sentia-se o outono e já estava escuro; estávamos tristes. “Pois bem, meu rapaz, como vamos fazer nossos preparativos?” Pensava retornar a conversa da véspera. Nem um palavra. Mas seus dedinhos tremiam na minha mão. “Isto vai mal”, disse a mim mesmo, “há novidade.” Chegamos, como agora, até aquela pedra; sentei-me nela, haviam empinado papagaios que estalavam ao vento. Havia bem uns trinta. É a estação agora. “Deveríamos nós também, Iliúchka, empinar o papagaio do ano passado. Consertá-lo-ei. Que fizeste dele?” Meu filho cala-se, olha para o lado, desviando a vista. De repente, o vento se põe a assobiar, levantando areia... Lança-se par mim, com seus dois braços enlaça-me o pescoço, abraça-me. Sabe que, quando os meninos são taciturnos e altivos, retêm muito tempo suas lágrimas, mas, quando elas brotam, por motivo dum grande pesar, não correm, mas jorram? Suas lágrimas ardentes inundaram-me o rosto. Ele soluçava, convulsivamente, apertava-me contra ele. “Pápotchka”, gritou ele, “meu querido pápotchka, como ele te humilhou!” Então os soluços dominaram-me e nos abalavam, enlaçados sobre esta pedra. Ninguém nos via então, exceto Deus. Talvez me leve isso em conta. Agradeça a seu irmão, Alieksiéi Fiódorovitch. Não, não açoitarei meu filho para causar-lhe satisfação!”


Dostoiévski

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.