26.11.05

Segue a citação:

"É peculiar o modo trágico desses senhores selarem suas fantasias com meia dúzia de palavras rebeldes somente para se verem livres de suas particulares misérias."
"O olhar que procura atentamente e só procura, procura, procura..."
"O último refúgio de um suicida são cartas, nelas é capaz de até dizer que ama sem ter a certeza de que serão lidas. E se lidas, não terá sequer a certeza de serem compreendidas já que se suicida por não saber dizê-las."

Na verdade só a primeira é uma citação, no uso curriqueiro da palavra.
As duas seguintes são minhas. Usei as aspas para dar autoridade a algo que achei bacana e para sugerir que sempre existe alguém que escreve o que se quer ouvir. Aspas mexem com a imaginação.

23.11.05

Interessante, só eu embarquei! Mas eu não dei o sinal. Dificilmente eu o daria sem perguntar, a outra pessoa que estivesse no ponto, qual o melhor ônibus para mim, já que eu não conheço nenhum neste lugar. Só consegui identificar o destino deste, numa placa fixada na dianteira, quando já passava por mim e foi por isso que corri atrás para pegá-lo, a uns metros à frente, sem entender por que parou. Mas como entender, se só eu e aquele velho estávamos no ponto, e ele mais preocupado em chupar a laranja do que observar os ônibus? Por que o motorista pararia sem ao menos eu sinalizar? Será que eu o conheço? Não, não o reconheço. Será que ele me conhece? Mesmo que conhecesse, o que não é o caso, não poderia saber para onde eu ia, nunca fui daqui para lá; para falar a verdade, nunca vim para estes lados antes. E o trocador, poderia ter dito algo se não estivesse tão preocupado em jogar conversa fora com aquela menina, ao mesmo tempo que ela lhe mostrava os seus cadernos? Engraçado, o motorista parou novamente sem que o homem que sentou lá na frente desse algum sinal e parece que também não se conheciam. Mas não é isto o que ocorreu? Ele parava nos pontos onde as pessoas não deram o sinal e aguardava até que um indeciso ou alguém com atenção dispersa entrasse; por incrível que pareça, sempre alguém entrava. Parece que sabe que estão lá, como se pudesse ver nos olhos das pessoas o que esperam! Ou talvez seja a experiência de um motorista treinado, ao ponto de saber que estará em um ponto um jovem que nunca lá esteve, e que provavelmente nunca o viu, e um velho sem vontade de sair do lugar, pelo menos enquanto saboreia a sua laranja - provavelmente comprada no carrinho perto do pronto-socorro. E se fosse um motorista gentil, o que é raro? Normalmente motoristas cortam pela esquerda em alta velocidade, quando ninguém acena antes do ônibus chegar ao ponto. Ele não deu um arranco sequer, sempre manteve a mesma baixa velocidade e sem sair da sua faixa, respeitou todos os cruzamentos, esperou que cada passageiro descesse com calma. Louvável, mas demorado; tenho pressa, muita pressa. Tudo bem quanto a ser o bom motorista, do tipo que segue as normas, mas só preciso dele quando estou na faixa de pedestre. “Tira o pé do meu almoço motor...”; o cidadão do banco de trás reclama impaciente o que eu gostaria de já ter dito. Imagino que todos estranhavam e condenavam os cuidados do motorista com os que estão dentro e fora do carro; uma senhora apertava o terço junto ao queixo como se observasse uma malcriação, resmungando com a boca murcha. Melhor, todos menos um: a moça de cabelos cacheados olhava pela janela como se não estivesse lá, a dois bancos pro fundo na fileira oposta; seu olhar parecia-me tão calmo... quis tê-los; e quem não os desejaria? Quando a vi percebi que estava próximo do destino. Minha pressa se misturou com o incômodo e vontade de seguir a viajem até o fim para ver aonde isso vai dar. “Malditos compromissos! Até pouco tempo não precisava seguí-los, mas agora... merda!” Não podia ficar e nem descer sem compreender o que está ocorrendo. Tinha que lhe perguntar qualquer coisa para não ficar a perscrutar possibilidades; não podia esperar, estava na hora de descer. “Me desculpa, tenho que falar com o motorista. Vou pular a roleta e descer pela frente, tranqüilo?” Dei um passo longo, sem me importar com o que o rapaz disse, dirigindo-me para o único objeto da minha atenção. O barulho do motor velho abafou a minha voz quando o chamei, aí falei mais alto: “motorista!” Ele já tinha me percebido, e virou para mim com os seus olhos vermelhos de cansaço e espremidos. Quando encontrou o meu rosto, depois de tateá-lo com a vista meio cerrada, levantou as sobrancelhas enrugando toda a testa encardida como se me pedisse a questão já em parte respondida. Eu precisava chamar pelo nome “este” motorista que me descentrou por alguns minutos das banalidades que ordinariamente me ocupam, e ao procurá-lo, no seu crachá, vi o mesmo óculos de lentes fundas que estão quebradas, sobre uma flanela desbotada, largada no canto perto do acelerador. Antes de se formar um pequeno sorriso no canto da minha boca junto ao desapontamento, por mais uma vez não encontrar o que deveria ser, ou melhor, de ser só isto, olhei para trás e vi a moça de cabelos cacheados me olhando, como se ela já soubesse.

21.11.05

Sobre os Personagens Conceituais

II - "Foi assim que há tempos, quando necessitei, inventei para mim os 'espíritos livres', aos quais é dedicado este livro melancólico-brioso que tem o título de Humano, demasiado humano: não existem esses 'espíritos livres', nunca existiram - mas naquele tempo, como disse, eu precisava deles como companhia, para manter a alma alegre em meio a muitos males (doença, solidão, exílio, acedia, inatividade): como valentes confrades fantasmas, com os quais proseamos e rimos, quando disso temos vontade, e que mandamos para o inferno, quando se tornam entediantes - uma compensação para os amigos que faltam. Que um dia poderão existir tais espíritos livres, que a nossa Europa terá esses colegas ágeis e audazes entre os seus filhos de amanhã, em carne e osso palpáveis, e não apenas, como para mim, em forma de espectros e sombras de um eremita: disso serei o último a duvidar. Já os vejo que aparecem, gradual e lentamente; e talvez eu contribua para apressar sua vinda, se descrever de antemão sob que fados os vejo nascer, por quais caminhos aparecer"
IV - "Desse isolamento doentio, do deserto desses anos de experimento, é ainda longo o caminho até a enorme e transbordante certeza e saúde, que não pode dispensar a própria doença como meio e anzol para o conhecimento, até a madura liberdade do espírito, que é também autodomínio e disciplina do coração e permite o acesso a modos de pensar numerosos e contrários - até a amplidão e refinamento anterior que vem da abundância, que exclui o perigo de que o espírito porventura se perca e se apaixone pelos próprios caminhos e fique inebriado em algum canto; até o excesso de forças plásticas, curativas, reconstrutoras e restauradoras, que é precisamente a marca da grande saúde, o excesso que dá ao espírito livre o perigoso privilégio de poder viver por experiência e oferecer-se à aventura: o privilégio de mestre do espírito livre! No entremeio podem estar longos anos de convalescença, anos plenos de transformações multicores, dolorosamente mágicas, dominadas e conduzidas por uma tenaz vontade de saúde, que freqüentemente ousa vestir-se e travestir-se de saúde. Há um estado intermediário, de que um homem com esse destino não se lembrará depois sem emoção: uma pálida, refinada felicidade de luz e sol que lhe é peculiar, uma sensação de liberdade de pássaro, de horizonte e altivez de pássaro, um terceiro termo, no qual curiosidade e suave desprezo se uniram. Um 'espírito livre' - esta fria expressão faz bem nesse estado, aquece quase. Assim se vive, não mais nos grilhões de amor e ódio, sem Sim, sem Não, voluntariamente próximo, voluntariamente longe, de preferência escapando, evitando, esvoaçando, outra vez além, novamente para o alto; esse homem é exigente, mal-acostumado, como todo aquele que viu abaixo de si uma multiplicidade imensa - torna-se o exato oposto dos que se ocupam de coisas que não lhes dizem respeito. De fato, ao espírito livre dizem respeito, de ora em diante, somente coisas - e quantas coisas! - que não mais o preocupam..."
V - "Um passo adiante na convalescença: e o espírito livre se aproxima novamente à vida, lentamente, sem dúvida, e relutante, um tanto desconfiado. Em sua volta há mais calor, mais dourado talvez; sentimento e simpatia se tornam profundos, todos os ventos tépidos passam sobre ele. É como se apenas hoje tivesse olhos para o que é próximo. Admira-se e fica em silêncio: onde estava então? Essas coisas vizinhas e próximas: como lhe parecem mudadas! de que magia e plumagem se revestiral! Ele olha agradecido para trás - agradecido a suas andanças, a sua dureza e alienação de si, a seus olhares distantes e vôos de pássaro em frias alturas. Como foi bom não ter ficado 'em casa', 'sob seu teto', como um delicado e embotado inútil! Ele estava fora de si: não há dúvida. Somente agora vê a si mesmo - e que surpresas não encontra! Que arrepios inusitados! Que felicidade mesmo no cansaço, na velha doença, nas recaídas do convalescente! Quem, como ele, compreende a felicidade do inverno, as manchas de sol no muro? São os mais agradecidos animais do mundo, e também os mais modestos, esses convalescentes e lagartos que de novo se voltam para a vida: - há entre eles os que não deixam passar o dia sem lhe pregar um hino de louvor à orla do manto que se vai. E, falando seriamente: é uma cura radical para todo pessimismo (o câncer dos velhos idealistas e heróis da mentira, como se sabe -) ficar doente à maneira desses espíritos livres, permanecer doente por um bom período e depois, durante mais tempo, durante muito tempo tornar-se sadio, quero dizer, 'mais sadio'. Há sabedoria nisso, sabedoria de vida, em receitar para si mesmo a saúde em pequenas doses e muito lentamente"

20.11.05


HISTÓRIA DO OLHO (trecho)
Georges Bataille

"(...)
Apavorado, o padre levantou-se, mas o inglês torceu-lhe um braço e jogou-o novamente nas lajes.
Sir Edmond amarrou-lhe os braços atrás das costas. Eu amordacei-o e atei-lhe as pernas com o meu cinto. Depois que ele foi parar no chão, estendido, o inglês segurou-lhe os braços, comprimindo-os em suas mãos. Imobilizou-lhe as pernas envolvendo-as com as suas. De joelhos, eu mantinha a cabeça entre as coxas.
O inglês disse a Simone:
- Agora, trepa nesse rato de sacristia.
Simone tirou o vestido. Sentou-se sobre o ventre do mártir, com a boceta perto do cacete mole.
O inglês continuou, falando sob o corpo da vítima:
- Agora, aperta-lhe a garganta, um canal mesmo por trás da maçã de Adão: uma forte pressão gradual.
Simone apertou: um tremor crispou o corpo imobilizado, e o pau ergueu-se. Agarrei-o e introduzi-o na carne de Simone. Ela continuava apertando a garganta.
Violentamente, a moça, ébria até o sangue, remexia, num movimento de vaivém, o pau retesado no interior de sua vulva. Os músculos do padre ficaram tensos.
Por fim ela apertou tão decididamente que um violento arrepio fez estremecer o moribundo: ela sentiu a porra inundá-la. Então largou a garganta e caiu, derrubada por uma tempestade de prazer.
Simone permanecia estendida sobre as lajes, de barriga para o ar, com o esperma do morto escorrendo pelas coxas. Estendi-me para fodê-la também. Estava paralisado. Um excesso de amor e a morte do miserável tinham-me esgotado. Nunca me senti tão feliz. Limitei-me a beijar a boca de Simone.
A jovem teve vontade de ver a sua obra e afastou-me para se levantar. Trepou novamente, de cu pelado sobre o cadáver pelado. Examinou o rosto, limpou o suor da testa. Uma mosca, zumbindo num raio de sol, voltava incessantemente para pousar sobre o morto. Ela enxotou-a porém e de repente aconteceu algo estranho: pousada sobre o olho do morto, a mosca deslocava-se sobre o globo vítreo. Agarrando a própria cabeça com as mãos, Simone sacudiu-a, tremendo. Vi-a mergulhar num abismo de pensamentos.
Por mais estranho que possa parecer, nós não nos tínhamos preocupado com o modo como essa história pudesse acabar. Se algum intrometido tivesse surgido, nós não teríamos deixado que manifestasse a sua indignação durante muito tempo... Mas não importa. Simone, saindo de seu embrutecimento, levantou-se e aproximou-se de Sir Edmond que se encostara a uma parede. Ouvia-se a mosca voar.
- Sir Edmond, disse Simone, grudando seu rosto contra o ombro do inglês, você vai fazer o que eu lhe pedir?
- Vou... provavelmente, respondeu o inglês.
Ela me levou até ao lado do morto e, ajoelhando-se, levantou a pálpebra e abriu inteiramente o olho sobre o qual a mosca tinha pousado.
- Você está vendo o olho?
- E daí?
- É um ovo, disse ela, com toda a simplicidade.
Insisti, perturbado:
- Aonde você quer chegar?
- Quero me divertir com ele.
- E mais o quê?
Levantando-se, ela parecia afogueada (estava, então, terrivelmente nua).
- Escute, Sir Edmond, disse ela, quero que você me dê o olho já. Arranque-o.
Sir Edmond não estremeceu; pegou uma tesoura numa bolsa, ajoelhou-se, recortou as carnes e, em seguida, enfiando os dedos na órbita, retirou o olho, cortando os ligamentos estendidos. Colocou o pequeno globo branco na mão de sua amiga.
Ela olhou a extravagância, visivelmente constrangida, mas não hesitou. Acariciando as pernas, fez escorregar o olho sobre elas. A carícia do olho sobre a pele é de uma doçura excessiva... e produz um horrível som, como um grito de galo.
No entanto, Simone divertia-se, fazia o olho escorregar na racha das nádegas. Estendeu-se no chão, levantou as pernas e o cu. Tentou imobilizar o globo contraindo as nádegas, mas ele pulou como um caroço entre os dedos - e caiu sobre a barriga do morto.
O inglês tinha-me despido.
Joguei-me sobre a moça e a sua vulva engoliu o meu pau. Fodi-a: o inglês fez rebolar o olho entre nossos corpos.
- Enfie ele no meu cu, gritou Simone.
Sir Edmond introduziu o olho na fenda e empurrou.
Finalmente, Simone deixou-me, tirou o olho das mãos de Sir Edmond e introduziu-o em sua carne. Nesse momento, puxou-me contra ela e beijou o interior da minha boca de um modo tão ardente que o orgasmo me veio logo: minha porra espirrou nos seus pêlos.
Levantando-me, afastei as coxas de Simone: ela jazia no chão, estendida de lado. Encontrei-me então diante do que, imagino, eu esperara desde sempre, assim como uma guilhotina espera a cabeça que vai decepar. Os meus olhos pareciam-me eréteis de tanto horror; eu vi, na vulva peluda de Simone, o olho azul pálido de Marcela me olhar, chorando lágrimas de urina. Rastros de porra no pêlo fumegante conferiam a esse espetáculo uma dimensão de dolorosa tristeza. Mantinha as coxas de Simone afastadas: a urina ardente escorria por baixo do olho, sobre a coxa a poiada no chão... (...)"
(In Bataille, Georges. História do Olho, seguido de Madame Edwarda e O Morto. Editora Escrita, SP, 1981)

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.