24.11.07

iii)

O descanso não veio como eu esperava. Um mês de trabalho árduo e pouco resultado. O engraçado é que só percebo que sou outro quando tento voltar a agir normalmente. Bem, o que eu esperava deste fim de semana livre de obrigações? Não quero beber e nem me perder pela cidade. Isto já se tornou outra rotina. Se retorno à leitura, volto a olhar pela janela e pedir temporais para que a vida dos demais pare e só recomece quando eu estive livre do fardo que escolhi (isto não mais parece ser uma escolha). Não posso ficar esperando que as coisas me esperem. Também acho que não devo segui-las. O problema de tudo, aqui, é no fim das contas fazer pouca ou nenhuma diferença tanto sofrimento para se alcançar algo “bom’ ou que pelo menos nos dizem ser. Veja este diálogo: “Vem comigo?”, “Sim”, ”Então vamos”. Quantas vezes fiz o pedido que é a primeira frase. É uma frase simples. Tudo podia ser mais simples. Eu podia ser mais simples, com poucos abismos.

Em exatamente dois meses completarei mais um ano na minha vida (realmente o tempo não para) e não acredito muito que frases como essas poderão algum dia resultarem em algo. “Algum dia” não existe. A fé não quer voltar com a idade.

Rilke

O Solitário

Não: uma torre se erguerá do fundo
do coração e eu estarei à borda:
onde não há mais nada, ainda acorda
o indizível, a dor, de novo o mundo.

Ainda uma coisa, só, no imenso mar
das coisas, e uma luz depois do escuro,
um rosto extremo do desejo obscuro
exilado em um nunca-apaziguar,

ainda um rosto de pedra, que só sente
a gravidade interna, de tão denso:
as distâncias que o extinguem lentamente
tornam seu júbilo ainda mais intenso.

Rainer Maria Rilke


Tradução: Augusto de Campos

20.11.07

Se Fosse Alguma Coisa, Não Poderia Imaginar

Monotonizar a existência, para que ela não seja monótona. Tornar anódino o quotidiano, para que a mais pequena coisa seja uma distracção. No meio do meu trabalho de todos os dias, baço, igual e inútil, surgem-me visões de fuga, vestígios sonhados de ilhas longínquas, festas em áleas de parques de outras eras, outras paisagens, outros sentimentos, outro eu. Mas reconheço, entre dois lançamentos, que se tivesse tudo isso, nada disso seria meu. Mais vale, na verdade, o patrão Vasques que os Reis do Sonho; mais vale, na verdade, o escritório da Rua dos Douradores do que as grandes áleas dos parques impossíveis. Tendo o patrão Vasques, posso gozar a visão interior das paisagens que não existem. Mas se tivesse os Reis do Sonho, que me ficaria para sonhar? Se tivesse as paisagens impossíveis, que me restaria de possível ?

(...) Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar. O ajudante de guarda-livros pode sonhar-se imperador romano; o Rei de Inglaterra não o pode fazer, porque o Rei de Inglaterra está privado de o ser, em sonhos, outro rei que não o rei que é. A sua realidade não o deixa sentir.


Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego'

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.