16.9.06

Olho o tamanho deste quarto. Olho os livros amontoados, a poeira sobre os moveis, a laranja à minha frente. Fico por minutos olhando as coisas deste quarto. Como a minha cama é grande, maior a cada manhã. Vejo a varanda e a porta de vidro pela qual o sol passa difuso. Olho para as janelas fechadas para a minha segurança. Vejo preás correndo pelo chão.
É correto insistir em ser ouvido se isto me leva a perder a voz?

12.9.06

Cada um com a sua vidinha,
Com as suas inúteis experimentações sintático-semânticas para encobrir a completa falta de jeito e imaginação,
Com os seus preconceitos de época substancializados em sonhos, pior, em projetos.
Com seus rodeios infinitos sobre a existência finita e só simples.
Com os seus ouvidos tampados.

Como disse o outro:
“Nós nos divertimos como impessoalmente se diverte; lemos, vemos e julgamos a literatura e a arte como impessoalmente se vê e se julga; mais ainda, separamos-nos da ‘massa’ como dela impessoalmente se separa; nos ‘indignamos’ com aquilo com que impessoalmente se indigna.” SuZ

E como Eu digo:
“Chame-me de desgraçado, infeliz. Deixe estar e me deixe só.”

10.9.06

O feminino foi primeiramente compreendido como Casa. O sujeito perdido entre os elementos do mundo, está sujeito ao desaparecimento. Esse sujeito ainda não está pronto, precisa construir uma interioridade, mostrar-se in-divíduo, estar definitivamente separado. O risco do anonimato o persegue e a incerteza do amanhã faz com que esse sujeito busque um abrigo. A Casa não é mais um elemento entre outros, um prédio frio, mas ela possibilita a intimidade, pois é, desde já, acolhimento. A casa é hospitaleira porque é feminina. Como em um ‘útero’ agora o sujeito está seguro e é capaz de se construir plenamente. Lévinas, nessa relação íntima (e de intimidade) entre a casa e o feminino acrescenta que o feminino é apenas uma dimensão da morada e não necessitaria da Mulher concreta para aí se dar. O feminino é o acolhimento por excelência.
Mas o feminino é também Mulher, o Outro concreto que está na casa. Um Outro cuja presença é discreta, quase uma ausência, efetivando o acolhimento que a casa potencializa. No Eros, a fenomenologia realiza seu movimento sem se completar, o feminino inaugura uma relação nova que exige conseqüentemente, uma nova postura daquele que se coloca como Mesmo. O feminino é aquele que “se apresenta sem se apresentar”, enunciado que se torna absurdo a uma consciência acostumada com a lógica da coerência. « A simultaneidade ou equívoco dessa fragilidade e desse peso de não significância, mais pesado que o peso do real amorfo, nós chamamos feminidade.» Ao mesmo tempo que a Amada surge, ela também se retira, seu modo de existência é uma fuga à luz, como se habitasse o obscuro (trevas). Assim, a Amada desafia, faz o convite a uma outra relação tanto erótica como racional. O toque não toca uma pele para se apropriar, visando ao prazer do presente, tornando o Outro objeto de desejo. O toque conduz os amantes ao futuro, ao que ainda não é, «um menos que nada». Pensar a Amada além do objeto e do rosto não é pensar alguém que não tenha um rosto, mas é estar diante de alguém que não nos remete nem a nós nem a ela mesma, mas a um além. O feminino, enquanto Amada, está para além do rosto, pois apresenta uma excedência em si mesmo. O encontro com o feminino é o próprio desencontro, em que se busca um outro que não pode nunca estar aí. Lévinas chega a comparar o erótico ao il y a, da noite que se faz no anonimato. A noite do erótico esconde o mistério do que não pode ser violado e conserva por isso, sua virgindade. Tocar o feminino é desde já profaná-lo! O Feminino que é noite, quase il y a, portanto amorfo, não tem o estatuto de ente, não é nomeável, e podemos ainda dizer, nem humano. Entre o animal e a criança, a Amada deixa seu estatuto de pessoa. Poderíamos dizer que a Fenomenologia da carícia descrita por Lévinas a partir da relação com o feminino inaugura uma reflexão que será desenvolvida em toda sua obra, mesmo que essa terminologia seja depois abandonada. O dito filosófico “toca” o Outro em sua ausência, como uma carícia que não quer e não pode se apropriar da pele do Outro, como uma palavra que não aprisiona.Rosto, que é diferente a ponto de ser adjetivado como rosto feminino, quando se olha no espelho, não se vê mais. Perdida em sua própria animalidade, portanto sujeita à natureza, o feminino segue seu destino natural: gerar o outro e não a si. Equivocidade extrema daquela que parece não querer crescer, por isso está entre a criança e o animal, ambos sujeitos a seus instintos, entregues ao tempo, apenas vivendo. Vida de irresponsabilidade, não aberta ao social, vida que se faz na intimidade não necessitante de linguagem, excluindo o terceiro. A Amada deixa o Amado sem palavras. O feminino é então o equívoco por excelência.
A Mulher é o equívoco da linguagem, que ao invés de dizer, faz calar. Sua presença/impresença anuncia o silêncio que é capaz de dizer mais do que qualquer palavra, pois “sem linguagem, nada se mostra. E se calar é ainda falar, o silêncio é impossível”. Assim, em sua condição de passagem, a mulher conduz ao futuro que é Outro. Não é nela que se realiza a ética (pois o universo erótico é ainda ontológico), mas através dela, que o terceiro – filho – tira os amantes de seu egoísmo erótico para abrirem-se à Justiça, como concretude ética. O feminino, que enquanto Casa, possibilita a interioridade; enquanto Mulher é responsável pela exterioridade do Eu (viril). Diante do rosto da mulher, a fecundidade se abre e o Amante se dirige ao Outro que não é mais ele mesmo, mas outro completamente outro – a exterioridade se chama agora Filho e a maternidade é a partir daí subsumida, como se na maternidade o filho fosse imanência e na paternidade fosse transcendência. A paternidade revela uma perpetuação do pai, mas ao mesmo tempo, um diferimento, em que o filho realiza a alteridade do pai.

Se o amante se transcende através do
filho, como a mulher, agora mãe, pode
realizar a sua transcendência? Deixando
certamente de ser “rosto feminino” para
ser apenas Rosto, em que o traço da
feminidade não apareça mais. O Rosto é
então dessexualizado e passa a ser Rosto
(maiúsculo) porque pode ser qualquer um
e todos ao mesmo tempo, contém em si a
singularidade e universalidade ao mesmo
tempo.

O Feminino surge também como linguagem, a maternidade é a metáfora possível para falar da Subjetividade. Assim, o corpo da mulher fala mais que ela mesma. Sua linguagem, no entanto não é de palavras, mas de uma significância além do ser, da essência e de toda consciência. A subjetividade parte do Corpo e não do Logos, mesmo que necessite do logos para dizê-lo, o corpo é a linguagem que precede a língua, lugar (ou não lugar) onde habita a ética. Corpo que é capaz de Dizer o que a mulher não diz, pois arraigada à intimidade da relação erótica, assemelha-se ao Tu familiar e não ao Vós que é altura. A linguagem da mulher, por ser silenciosa não ensina, rompe com a “tagarelice” da consciência, que a tudo quer entender e desvelar. Uma nova relação se faz, que é a desfalecência do ser e fonte da doçura em si. A mulher inaugura uma relação diferente de todas as relações que o homem até então construíra. O ser, sempre compreendido como essência, que invade e define todas as coisas, se encontra ferido em seu movimento pelo feminino. Mas sua ferida é doçura, como se o feminino penetrasse lentamente o domínio do ser para lhe mostrar um “outramente que ser”. Não há violência, não há fala, apenas um silêncio daquela que não precisa se exibir para mostrar que está aí. O feminino é uma presença discreta, quase inexistente, mas que em sua “insignificância” é capaz de anunciar a verdadeira significância.

Magali Mendes de Menezes - O DIZER: Um ensaio desde E. Lévinas e J. Derrida: sobre a linguagem estrangeira do Outro, da Palavra e do Corpo

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.