28.9.06

“Um acontecimento vivido é finito. Um acontecimento lembrado é ilimitado”

“Só conhece realmente uma pessoa quem a ama sem esperança”


W. Benjamin

24.9.06

No corpo feminino, esse retiro

No corpo feminino, esse retiro
- a doce bunda - é ainda o que prefiro.
A ela, meu mais íntimo suspiro,
pois tanto mais a apalpo quanto a miro.

Que tanto mais a quero, se me firo
em unhas protestantes, e respiro
a brisa dos planetas, no seu giro
lento, violento... Então, se ponho e tiro

a mão em concha - a mão, sábio papiro,
iluminando o gozo, qual lampiro,
ou se, dessedentado, já me estiro,

me penso, me restauro, me confiro,
o sentimento da morte eis que o adquiro:
de rola, a bunda torna-se vampiro.

Drummond

22.9.06

Fique à vontade. Sente-se e apóie seus pés sobre a pequena mesa à sua frente. Daqui irei lhe desenhar. Não irei desenhar o rosto mesmo não tendo que decidir a cor dos olhos, já que a tinta é apenas negra, e nem a cor dos cabelos, já que são negros. Não tenho este dom. Resta-me o seu pequeno corpo. Só sei reproduzir simples. Ficará simples. O traço da tinta negra sobre o branco do papel dará a sua cor, a mesma dos dentes sobre o fundo negro e úmido da boca. Uma tatuagem. Teu colo. A mão que abraça o livro. O livro como extensão de teu corpo. Teu corpo como traço. Teu corpo não é um traço. Compreendê-la é um desafio e não só curiosidade. Não posso além de traços. Sozinho posso muito pouco. Do alto não há compreensão. Não se compreende sem contato. É do contato que há. Só, não compreenderei os limites do que posso traçar, o que me é possível. Não vá embora antes que eu a compreenda. Não vá embora antes que você me compreenda. Não vá embora antes que eu desça a escada. Não vá embora porque desci a escada e você não estava mais sentada com os pés sobre a mesinha. Não vá embora antes da compreensão que não houve.

18.9.06

Blue jean baby, L.A lady
Seamstress for the band
Pretty eyed, pirate smile
You married the music man
Ballerina, you must've seen her dancing in the sand
And now she's in me, always with me
Tiny dancer in my hand

Jesus freaks out in the street
Handing tickets out for Gold
Turning back she just laughs
The boulevard is not that bad

Piano man he makes his stand
In the auditorium
Looking on she sings the songs
The words she knows
The tunes she hums

But oh how it feels so real
Lying here with no one near
Only you and you can hear me
When I say softly, slowly

Hold me closer tiny dancer
Count the headlights on the highway
Lay me down in sheets of linen
You had a busy day today

É o que escuto agora, 30 de novembro de 1971.
Nessa época eu não teria largado o tabaco e, não sei como, beberia bem mais.
E nunca ficaria até tarde decorando o que só se aprende por prazer.

16.9.06

Olho o tamanho deste quarto. Olho os livros amontoados, a poeira sobre os moveis, a laranja à minha frente. Fico por minutos olhando as coisas deste quarto. Como a minha cama é grande, maior a cada manhã. Vejo a varanda e a porta de vidro pela qual o sol passa difuso. Olho para as janelas fechadas para a minha segurança. Vejo preás correndo pelo chão.
É correto insistir em ser ouvido se isto me leva a perder a voz?

12.9.06

Cada um com a sua vidinha,
Com as suas inúteis experimentações sintático-semânticas para encobrir a completa falta de jeito e imaginação,
Com os seus preconceitos de época substancializados em sonhos, pior, em projetos.
Com seus rodeios infinitos sobre a existência finita e só simples.
Com os seus ouvidos tampados.

Como disse o outro:
“Nós nos divertimos como impessoalmente se diverte; lemos, vemos e julgamos a literatura e a arte como impessoalmente se vê e se julga; mais ainda, separamos-nos da ‘massa’ como dela impessoalmente se separa; nos ‘indignamos’ com aquilo com que impessoalmente se indigna.” SuZ

E como Eu digo:
“Chame-me de desgraçado, infeliz. Deixe estar e me deixe só.”

10.9.06

O feminino foi primeiramente compreendido como Casa. O sujeito perdido entre os elementos do mundo, está sujeito ao desaparecimento. Esse sujeito ainda não está pronto, precisa construir uma interioridade, mostrar-se in-divíduo, estar definitivamente separado. O risco do anonimato o persegue e a incerteza do amanhã faz com que esse sujeito busque um abrigo. A Casa não é mais um elemento entre outros, um prédio frio, mas ela possibilita a intimidade, pois é, desde já, acolhimento. A casa é hospitaleira porque é feminina. Como em um ‘útero’ agora o sujeito está seguro e é capaz de se construir plenamente. Lévinas, nessa relação íntima (e de intimidade) entre a casa e o feminino acrescenta que o feminino é apenas uma dimensão da morada e não necessitaria da Mulher concreta para aí se dar. O feminino é o acolhimento por excelência.
Mas o feminino é também Mulher, o Outro concreto que está na casa. Um Outro cuja presença é discreta, quase uma ausência, efetivando o acolhimento que a casa potencializa. No Eros, a fenomenologia realiza seu movimento sem se completar, o feminino inaugura uma relação nova que exige conseqüentemente, uma nova postura daquele que se coloca como Mesmo. O feminino é aquele que “se apresenta sem se apresentar”, enunciado que se torna absurdo a uma consciência acostumada com a lógica da coerência. « A simultaneidade ou equívoco dessa fragilidade e desse peso de não significância, mais pesado que o peso do real amorfo, nós chamamos feminidade.» Ao mesmo tempo que a Amada surge, ela também se retira, seu modo de existência é uma fuga à luz, como se habitasse o obscuro (trevas). Assim, a Amada desafia, faz o convite a uma outra relação tanto erótica como racional. O toque não toca uma pele para se apropriar, visando ao prazer do presente, tornando o Outro objeto de desejo. O toque conduz os amantes ao futuro, ao que ainda não é, «um menos que nada». Pensar a Amada além do objeto e do rosto não é pensar alguém que não tenha um rosto, mas é estar diante de alguém que não nos remete nem a nós nem a ela mesma, mas a um além. O feminino, enquanto Amada, está para além do rosto, pois apresenta uma excedência em si mesmo. O encontro com o feminino é o próprio desencontro, em que se busca um outro que não pode nunca estar aí. Lévinas chega a comparar o erótico ao il y a, da noite que se faz no anonimato. A noite do erótico esconde o mistério do que não pode ser violado e conserva por isso, sua virgindade. Tocar o feminino é desde já profaná-lo! O Feminino que é noite, quase il y a, portanto amorfo, não tem o estatuto de ente, não é nomeável, e podemos ainda dizer, nem humano. Entre o animal e a criança, a Amada deixa seu estatuto de pessoa. Poderíamos dizer que a Fenomenologia da carícia descrita por Lévinas a partir da relação com o feminino inaugura uma reflexão que será desenvolvida em toda sua obra, mesmo que essa terminologia seja depois abandonada. O dito filosófico “toca” o Outro em sua ausência, como uma carícia que não quer e não pode se apropriar da pele do Outro, como uma palavra que não aprisiona.Rosto, que é diferente a ponto de ser adjetivado como rosto feminino, quando se olha no espelho, não se vê mais. Perdida em sua própria animalidade, portanto sujeita à natureza, o feminino segue seu destino natural: gerar o outro e não a si. Equivocidade extrema daquela que parece não querer crescer, por isso está entre a criança e o animal, ambos sujeitos a seus instintos, entregues ao tempo, apenas vivendo. Vida de irresponsabilidade, não aberta ao social, vida que se faz na intimidade não necessitante de linguagem, excluindo o terceiro. A Amada deixa o Amado sem palavras. O feminino é então o equívoco por excelência.
A Mulher é o equívoco da linguagem, que ao invés de dizer, faz calar. Sua presença/impresença anuncia o silêncio que é capaz de dizer mais do que qualquer palavra, pois “sem linguagem, nada se mostra. E se calar é ainda falar, o silêncio é impossível”. Assim, em sua condição de passagem, a mulher conduz ao futuro que é Outro. Não é nela que se realiza a ética (pois o universo erótico é ainda ontológico), mas através dela, que o terceiro – filho – tira os amantes de seu egoísmo erótico para abrirem-se à Justiça, como concretude ética. O feminino, que enquanto Casa, possibilita a interioridade; enquanto Mulher é responsável pela exterioridade do Eu (viril). Diante do rosto da mulher, a fecundidade se abre e o Amante se dirige ao Outro que não é mais ele mesmo, mas outro completamente outro – a exterioridade se chama agora Filho e a maternidade é a partir daí subsumida, como se na maternidade o filho fosse imanência e na paternidade fosse transcendência. A paternidade revela uma perpetuação do pai, mas ao mesmo tempo, um diferimento, em que o filho realiza a alteridade do pai.

Se o amante se transcende através do
filho, como a mulher, agora mãe, pode
realizar a sua transcendência? Deixando
certamente de ser “rosto feminino” para
ser apenas Rosto, em que o traço da
feminidade não apareça mais. O Rosto é
então dessexualizado e passa a ser Rosto
(maiúsculo) porque pode ser qualquer um
e todos ao mesmo tempo, contém em si a
singularidade e universalidade ao mesmo
tempo.

O Feminino surge também como linguagem, a maternidade é a metáfora possível para falar da Subjetividade. Assim, o corpo da mulher fala mais que ela mesma. Sua linguagem, no entanto não é de palavras, mas de uma significância além do ser, da essência e de toda consciência. A subjetividade parte do Corpo e não do Logos, mesmo que necessite do logos para dizê-lo, o corpo é a linguagem que precede a língua, lugar (ou não lugar) onde habita a ética. Corpo que é capaz de Dizer o que a mulher não diz, pois arraigada à intimidade da relação erótica, assemelha-se ao Tu familiar e não ao Vós que é altura. A linguagem da mulher, por ser silenciosa não ensina, rompe com a “tagarelice” da consciência, que a tudo quer entender e desvelar. Uma nova relação se faz, que é a desfalecência do ser e fonte da doçura em si. A mulher inaugura uma relação diferente de todas as relações que o homem até então construíra. O ser, sempre compreendido como essência, que invade e define todas as coisas, se encontra ferido em seu movimento pelo feminino. Mas sua ferida é doçura, como se o feminino penetrasse lentamente o domínio do ser para lhe mostrar um “outramente que ser”. Não há violência, não há fala, apenas um silêncio daquela que não precisa se exibir para mostrar que está aí. O feminino é uma presença discreta, quase inexistente, mas que em sua “insignificância” é capaz de anunciar a verdadeira significância.

Magali Mendes de Menezes - O DIZER: Um ensaio desde E. Lévinas e J. Derrida: sobre a linguagem estrangeira do Outro, da Palavra e do Corpo

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.