17.3.07

O outro canto de dança

1


“Em teus olhos olhei, de pouco tempo, ó vida: vi ouro luzir na noite de teus olhos ─ parou meu coração dessa volúpia.

─ dourado barquinho vi luzir em águas noturnas, um flutuante, dourado barquinho a submergir, a embarcar água, novamente a acenar!

Para o meu pé, frenético pela dança, lançaste um olhar, um ondeante olhar, sorridente, indagador, enternecedor.

Duas vezes somente, com mãos pequenas, bateste as tuas castanholas ─ e já o meu pé se agitava no frenesi pela dança ─

Meu calcanhar se empinava, os dedos do pé escutavam atentos para compreender-te: pois o ouvido, o dançarino ─ o tem nos dedos do pés!

Pulei para ti ─ mas recuastes e fugiste ante o meu pulo; e açoitaram-me as línguas volantes do teu cabelo em fuga!

Pulei para longe de ti e das tuas serpentes; e já lá estavas tu, voltada pela metade, o olhar cheio de desejo.

Com sinuosos olhares ─ ensina-me sinuosos caminhos; em sinuosos caminhos aprende o meu pé – a astuciar!

Temo-te de perto, amo-te de longe. A tua fuga me atrai, se me procuras, estaco; ─ sofro, mas quem não sofreria de bom grado por ti!

Ó tu, cuja frieza incende, cujo ódio fascina, cuja fuga enlaça, cujo escárnio ─ comove:

─ quem não te odiaria, ó grande enlaçadora, enredadora, sedutora, tentadora, exploradora, descobridora! Quem não te amaria, inocente, impaciente, pecadora com olhos de criança apressada como o vento!

Para onde me arrastas, agora, indomável portento? E agora voltas a fugir de mim, amável e ingrata traquinas!

Eu te acompanho na dança, sigo as tuas menores pegadas. Quem és? Dá-me a mão! Ou, mesmo, somente um dedo!

Aqui há cavernas e matas: iremos extraviar-nos! ─ Alto! Detém-te. Não vês voejarem corujas e morcegos?

Ah, coruja! Ah, morcego! Queres zombar de mim? Onde estamos? Aprendeste-o dos cães, este uivar e ganir.

Graciosamente me arreganhas os teus dentinhos brancos; por entre ondeadas melenas, investem contra mim os teus olhos malvados.

É uma dança desenfreada; eu sou o caçador ─ queres ser o meu cão ou meu cabrito montês?

Fica a meu lado, agora! E depressa, malvada saltadora! Agora, sobe! Para a outra banda! ─ Ai de mim! Eu mesmo caí ao saltar!

Olha-me jazendo no solo, ó temerária, e pedindo mercê!

Gostaria de ir contigo ─ por sendas mais suaves!

─ pela senda do amor, por entre moitas silenciosas e coloridas! Ou, então, lá embaixo, ao longo do lago, onde nadam e dançam peixes dourados!

Estás cansada, agora? Há, por lá, ovelhas e rubros crepúsculos; não é bonito dormir ao som de flautas de pastores?

Sente-se assim tão cansada? Eu te levo até lá, deixa apenas cair os braços! E, se estás com sede ─ eu teria alguma coisa, mas a tua boca não quer beber! ─

─ Oh, essa maldita cobra e bruxa, ágil, flexível, escorregadia! Para onde fostes? Mais sinto no rosto dois leves toques e duas rubras manchas da tua mão!

Eu, sim, estou realmente cansado de ser sempre o mais parvo dos teus pastores! Se, até aqui, cantei para ti, bruxa, deve tu, agora ─ gritar!

Ao compasso do meu chicote deves dançar e gritar! Terei esquecido o chicote? ─ Não!”


Zaratustra, F. Nietzsche


uma palavra ilegível

11.3.07

O Haver - Vinicius de Moraes (participação de Edu Lobo)

Não tem muito tempo que experimentei fazer um pequeno video com um poema de Vinicius.
É um poema que volta para mim de tempos em tempos como tudo que amo e deixo escorrer pelas
mãos que nunca agarram.
É um video simples e simples.

26.2.07

"Música”, sorrindo peço para o escuro.
Como um pequeno sorriso agradeci pela a escolha dele: Mystique.

Num velho quarto num velho casarão. O lustre no teto que não acende.
Sem sono, desci para a cozinha. Perto do filtro de barro estava uma garrafa bronze a olhar-me. Perguntou-me por que a esqueci e respondi ironicamente: “Ainda não sabe que ela me abandonou?” A cachaça: “Prove-me e me diga..." Viu que permaneci distante e sem intenção de tomá-la. Depois de alguns segundos continuou: "Sua memória é tão fraca! Certa vez, e não faz muito tempo, tornei-a para ti tão bela, tão bela como me pediu. Quando ela negou a ti os seus cachos a dor preencheu o seu peito e só o ódio conseguiu comprimi-la. Inutilmente vagueou pela possibilidade de negá-la. Você dizia: "Como posso amar o meu o próprio algoz! É possivel alimentar amor por quem te massacra e te faz ver-se como fraco?" Parece que foi ontem... Quis que eu ajudasse a aceitar essa 'contradição', como disse em suas palavras, e eu te mostrei que não há 'contradição' alguma. O que são as pedras? Elementos condensados de uma maneira. Há pedras que nossa imaginação jamais dará conta. As que mais se aproximam de nossos ideais chamamos de preciosas. |ainda vou acabar este texto, quando o sono me permitir|Ela voou, mais alto que qualquer altar. Lembra que seus cânticos que antes tornaram-na tua, que celebravam a existência que ambos trouxeram à vida tornando-se até a própria vida!, quiseram tornar-se tudo? Quiseram ser ato! O mundo é tão grande e tuas palavras tão ínfimas. Ainda me lembro quando me disse: ‘Preciso de ti para fazê-la mais bela, menos humana! Quero amar e não sofrer!’ Simplesmente virou-me em seu corpo. Eu, cachaça, que posso fazer? Posso traduzir seu desespero em sonhos, fazer seus passos o do dançarino e sua dança única, mas jamais transformar o mundo para além da sua retina. Como foi tolo em achar que eu duraria para sempre em suas veias!, que eu, volátil, lhe daria por anos a fio todos os versos que queria! E além de tudo, quem amaria um ébrio? Logo que descobriu quem é, deixou-lhe um adeus.”
Levei a garrafa para o quarto e dormimos.

15.2.07

Uma fervorosa aposta que fiz nas palavras como solução, perdi. Nessas sagradas criaturas anteriores a tudo que sou, ainda creio da boca dos outros. Ah! Toda atenção dei a elas; fiz órfão o arder de meus dedos, ri dos que diziam que de um miserável só os braços importam, ignorei que nem todos infelizes têm ouvidos e olhos.

Aos deprimidos não posso dizer: “Ajudem-me, sou como vós”. Não me importa a dor alheia, sempre sou mais forte que os demais. São todos tão fracos. Far-me-iam um mostro se souberem o que passa em meu coração. Alguém gostaria de escutar-me? Alguém suportaria escutar-me e não temer a minha companhia? Nunca irei saber.

Ela teria me escutado já que me lia. Ela foi a minha maior aposta mesmo sendo ela tão ridícula. Tenho vergonha de meus vícios e digo até que não os tenho e ela, por sua vez, se gaba dos seus como se fosse eles e o que tem para além da si e falta de graça. Uma dona triste. No mais, que o diabo a carregue porque não preciso do amor dos fracos. No entanto, temo ainda amá-la.

30.1.07

Parar de escrever é única forma de parar de se repetir. Não há como não se repetir se é uma mesma coisa que lhe atormenta.

Quem devo escutar senão os meus intestinos!

A vontade como expressão da autonomia é coisa nossa. Há alguns séculos que insisto nisso. Lembro da primeira vez que me veio a idéia de escrever em primeira pessoa sobre a possibilidade de se escrever em primeira pessoa e não sentir culpa. Santo Agustinho me disse para procurar algo mais dentro de mim que esperar a vida passar devagar. E perguntei para o santo: “Dentro?” Não era apenas olhar para dentro. O olhar capta apenas onde há luz; as trevas podem apenas ser adentradas nunca contempladas. Adentrar-me para encontrar o que jamais verei não é uma novidade para aceita facilmente. O santo disse: “É rapaz, não dá para prosseguir sem passar por si mesmo...” O santo certamente sabia que ao contar qual o caminho para virtude, me ensinaria a sofrer segundo um propósito. Ora, foi à primeira vez que soube o significado de “sofrer” e que os propósitos são para os santos.

Na noite passada lembrei-me do Velho Santo que agora tenho em minha estante e escrevi:

Parar de escrever é única forma de parar de se repetir. Não há como não se repetir se é uma mesma coisa que lhe atormenta. Dostoiévski era um atormentado - de onde viria tanto sofrimento? Não escrevia porque não conhecia a sintaxe, e sim, as palavras. Lembro da primeira vez que ouvi a palavra depressão. “Toda a família está preocupada com a depressão em que está. Ela já não cuida mais das crianças e que qualquer dia vão encontrar ela morta. Depois que ele morreu (...)” Eu não tinha a mínima idéia do que era depressão, eu só comecei a compreender anos mais tarde quando descobri que a palavra solidão por si só é vazia de significado e que se houvesse significado não mudaria nada. Pela depressão fui levado a que nada há. Hoje falo de angústia e não somente depressão por compreendi que há momentos em que me dobro sobre mim mesmo e faço-me só.

O tormento que me arrastava todos os dias para cá, por um pouco mais de um ano, não o vejo mais pelas manhãs. Porém minhas palavras obrigam-me a vê-la.

Há uma pilha de livros aqui em frente e quero ler todos. Ler é agradável. Mas não tenho a vida inteira para ler tantos livros, tenho apenas alguns dias. A vontade é tão preguiçosa. Lembro de quando me pai segurava um cinto pesado e dizia para dar conta da leitura até o fim do dia. O medo me ensinou a amar a leitura. Hoje meu pai esta morto e o cinto eu queimei. Leio apenas quando quero e espero que isto venha a pagar a minha bebida.

Vi aqueles que trabalhavam por não ter outra alternativa para alcançar a graça eterna, e era tudo tão escuro. Plantavam mais do que podiam comer. Davam uma parte aos animais e passaram a ter mais animais do que podiam comer. Com os animais viram que podiam plantar várias vezes mais do que poderiam comer. Não entendia por que faziam isto já que por mais pesado que fosse o cinto de Deus este não iria cobrá-los. Percebi então que trabalhavam para a satisfação de seu Pai, mas mais ainda para a satisfação de seus intestinos.

Quando meu pai berrava em minhas orelhas sentia o mau hálito que via para lá de sua boca e garganta - era os seus intestinos que eu ouvia. Por que diabos hoje agradeço aos seus intestinos pelo homem que me tornei? Um homem que enquanto o pai estava vivo leu metade do mundo e hoje se diverte em dizer que esta metade é justamente a podre e que a outra jamais irá ler porque não tem mais um cinto que o obrigue. Obedeço somente aos meus intestinos herdados de meu pai e as mulheres que lá sempre estarão.

Permanecer só porque não acredito mais na liberdade. Hoje foi um bom dia. Encontrei uma mulher que queria ver. Ela estava mais bela do que de costume. Eu via em seus olhos a vontade de me acompanhar pelo resto de meus dias. Seus olhos eram belos e tristes. Eu não tinha dúvidas e ela também não. Ela me disse: “Você é só, eu não. Eu jamais poderei dizer a todos que te amo sem magoar alguém, eu nunca fui só”. E assim falou: “Poderá me amar mesmo que eu te magoe? Não deixarei de ser boa aos seus olhos? E se não olhar mais para mim, minha beleza não mais existirá para ti? E se descobrir que pouco te importa que me veja, não pensará que é porque não precisa mais de mim, lembrará que é só e errou novamente? Não posso te acompanhar sem que deseje tornar-se novamente só.” Ela não poderia se desvencilhar do seu mundo sem provocar dor aos que estavam ligados a ela, e eu junto a eles, e sofrer por isto. Ela tem razão: preciso do bom, do belo e da verdade e dela não posso esperar isso. Continuo só.

Hoje escrevi:

Ela tinha uma pena verde perdida entre seus cabelos; lisos e pretos escorriam pelo chão. Estava preocupada com as suas coisas. Estava preocupada com as coisas dos outros que nem conhecia, tantos que nunca conhecerá. Estava preocupada em ajudá-los a terem consciência - lhes transferir “a consciência” que ela que não os conhece tem. Dar-lhes consciência do que são é a maior das missões e sorte dela não ter esta consciência porque é frágil e não suportaria o peso. Que fardo é ter consciência. “Vocês já sabem quem são! Façam algo!” Quanto sangue escorrerá daí? “Quero apenas que tenham consciência”, ela sente. Em segredo os odeia? “Não consigo dormir, há tanto para ser feito. Tenho consciência!” Em segredo os ama?

Eu durmo deliciosamente porque me resigno apenas à escrita e quero como missão moldar máscaras, e quem sabe dá-las.

21.1.07

Dialética

É claro que a vida é boa
E a alegria, a única indizível emoção
É claro que te acho linda
Em ti bendigo o amor das coisas simples
É claro que te amo
E tenho tudo para ser feliz

Mas acontece que eu sou triste...


Vinícius de Moraes



...
acontece também que ela é triste. Quem sabe um dia eu volte a lê-la e render-me novamente a sua tristeza.


notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.