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30.1.07

Parar de escrever é única forma de parar de se repetir. Não há como não se repetir se é uma mesma coisa que lhe atormenta.

Quem devo escutar senão os meus intestinos!

A vontade como expressão da autonomia é coisa nossa. Há alguns séculos que insisto nisso. Lembro da primeira vez que me veio a idéia de escrever em primeira pessoa sobre a possibilidade de se escrever em primeira pessoa e não sentir culpa. Santo Agustinho me disse para procurar algo mais dentro de mim que esperar a vida passar devagar. E perguntei para o santo: “Dentro?” Não era apenas olhar para dentro. O olhar capta apenas onde há luz; as trevas podem apenas ser adentradas nunca contempladas. Adentrar-me para encontrar o que jamais verei não é uma novidade para aceita facilmente. O santo disse: “É rapaz, não dá para prosseguir sem passar por si mesmo...” O santo certamente sabia que ao contar qual o caminho para virtude, me ensinaria a sofrer segundo um propósito. Ora, foi à primeira vez que soube o significado de “sofrer” e que os propósitos são para os santos.

Na noite passada lembrei-me do Velho Santo que agora tenho em minha estante e escrevi:

Parar de escrever é única forma de parar de se repetir. Não há como não se repetir se é uma mesma coisa que lhe atormenta. Dostoiévski era um atormentado - de onde viria tanto sofrimento? Não escrevia porque não conhecia a sintaxe, e sim, as palavras. Lembro da primeira vez que ouvi a palavra depressão. “Toda a família está preocupada com a depressão em que está. Ela já não cuida mais das crianças e que qualquer dia vão encontrar ela morta. Depois que ele morreu (...)” Eu não tinha a mínima idéia do que era depressão, eu só comecei a compreender anos mais tarde quando descobri que a palavra solidão por si só é vazia de significado e que se houvesse significado não mudaria nada. Pela depressão fui levado a que nada há. Hoje falo de angústia e não somente depressão por compreendi que há momentos em que me dobro sobre mim mesmo e faço-me só.

O tormento que me arrastava todos os dias para cá, por um pouco mais de um ano, não o vejo mais pelas manhãs. Porém minhas palavras obrigam-me a vê-la.

Há uma pilha de livros aqui em frente e quero ler todos. Ler é agradável. Mas não tenho a vida inteira para ler tantos livros, tenho apenas alguns dias. A vontade é tão preguiçosa. Lembro de quando me pai segurava um cinto pesado e dizia para dar conta da leitura até o fim do dia. O medo me ensinou a amar a leitura. Hoje meu pai esta morto e o cinto eu queimei. Leio apenas quando quero e espero que isto venha a pagar a minha bebida.

Vi aqueles que trabalhavam por não ter outra alternativa para alcançar a graça eterna, e era tudo tão escuro. Plantavam mais do que podiam comer. Davam uma parte aos animais e passaram a ter mais animais do que podiam comer. Com os animais viram que podiam plantar várias vezes mais do que poderiam comer. Não entendia por que faziam isto já que por mais pesado que fosse o cinto de Deus este não iria cobrá-los. Percebi então que trabalhavam para a satisfação de seu Pai, mas mais ainda para a satisfação de seus intestinos.

Quando meu pai berrava em minhas orelhas sentia o mau hálito que via para lá de sua boca e garganta - era os seus intestinos que eu ouvia. Por que diabos hoje agradeço aos seus intestinos pelo homem que me tornei? Um homem que enquanto o pai estava vivo leu metade do mundo e hoje se diverte em dizer que esta metade é justamente a podre e que a outra jamais irá ler porque não tem mais um cinto que o obrigue. Obedeço somente aos meus intestinos herdados de meu pai e as mulheres que lá sempre estarão.

Permanecer só porque não acredito mais na liberdade. Hoje foi um bom dia. Encontrei uma mulher que queria ver. Ela estava mais bela do que de costume. Eu via em seus olhos a vontade de me acompanhar pelo resto de meus dias. Seus olhos eram belos e tristes. Eu não tinha dúvidas e ela também não. Ela me disse: “Você é só, eu não. Eu jamais poderei dizer a todos que te amo sem magoar alguém, eu nunca fui só”. E assim falou: “Poderá me amar mesmo que eu te magoe? Não deixarei de ser boa aos seus olhos? E se não olhar mais para mim, minha beleza não mais existirá para ti? E se descobrir que pouco te importa que me veja, não pensará que é porque não precisa mais de mim, lembrará que é só e errou novamente? Não posso te acompanhar sem que deseje tornar-se novamente só.” Ela não poderia se desvencilhar do seu mundo sem provocar dor aos que estavam ligados a ela, e eu junto a eles, e sofrer por isto. Ela tem razão: preciso do bom, do belo e da verdade e dela não posso esperar isso. Continuo só.

Hoje escrevi:

Ela tinha uma pena verde perdida entre seus cabelos; lisos e pretos escorriam pelo chão. Estava preocupada com as suas coisas. Estava preocupada com as coisas dos outros que nem conhecia, tantos que nunca conhecerá. Estava preocupada em ajudá-los a terem consciência - lhes transferir “a consciência” que ela que não os conhece tem. Dar-lhes consciência do que são é a maior das missões e sorte dela não ter esta consciência porque é frágil e não suportaria o peso. Que fardo é ter consciência. “Vocês já sabem quem são! Façam algo!” Quanto sangue escorrerá daí? “Quero apenas que tenham consciência”, ela sente. Em segredo os odeia? “Não consigo dormir, há tanto para ser feito. Tenho consciência!” Em segredo os ama?

Eu durmo deliciosamente porque me resigno apenas à escrita e quero como missão moldar máscaras, e quem sabe dá-las.

8.4.06

Este texto será revisto por toda nossa vida (revisto)


Em algum momento uma pessoa diz o que se passa, o que se vê em si
“Bem, é isto.”
E o outro diz “patético”!
Que mal há em quem julga?
Pato, janela, bola, sorrir. “Mas você diz sorrir em que sentido?”
“Aquela “escola” é tão mais velha do que eu e lá estará quando eu não mais estiver aqui”
O que sou eu diante o mundo?
Você não passa de um sopro
“Gosto de pão”. Você não entendeu, eu “gosto de pão”!
Não é apenas do trigo amassado e assado que falo, falo do pão
Um café amargo e um pedaço pão pela manhã faz lembrar-me de meu pai
Gosto de pão!
“Gosto de você!” Poderia ser Jeane, Andreía, Carine, Renata, Ana Paula
Não há razão para essa escolha
Razão...
Gosto é a palavra, exatamente a mesma de “gosto de pão”,
E “gosto”, tão ou quanto, “gosto” porque me faz bem - até o conhaque desce melhor
Porém “Ana Paula” não é “pão”. Seres distintos requerem discursos distintos
“Isto que você diz ser uma mãe junto ao seu filho não passa de ferro retorcido!”
Mergulhamos no rio, novamente
A cada dia percebo que Jeane não passa de “Jeane”, um ser que abarca inúmeros, infinitos seres, que requer inúmeros, infinitos discursos.
Bem, o que dizer?
“Alto lá! Tais questões não existem para os que simplesmente gostam. Quem pode pensar que se está amando um pão?”
Então, por que essas questões me surgem?
Quando se percebe que o geral não lhe exprime, pergunta-se quem é o acidente, quem é o desvio e a referência. Quando se percebe?
O instante. O salto. O meu salto
Calar-se quando se tem tanto a falar e se pode falar é anular-se
"Aperte a mão de quer bem e diga! Será ouvido, por Deus eu te digo!"
"Só que a mão deve estar estendida a mim, novamente o alheio se põe"
O que eu posso fazer diante do geral que me contém?
Nossos passos harmoniosos aos olhos deles são caóticos por que são nossos?
“Admita que tu é um acidente, e que todos também são; dá-se o primeiro passo”
Que cachorro, ânsia, leite, telha são “cachorro”, “leite”, “ânsia”, “telha”
Que somos “explorados” e “dominados” e que “lutamos”
A linguagem está no geral; como sei que não posso reinventar a pólvora
E quanto já escrevi para ti e não compreendeste!
Em todo fim de dia sinto o peso das minhas escolhas e a leveza de todos os demais
A palavra alheia, mesmo a angustiante, faz-me tão miserável,
é o que todas me dizem e que tento negar a todos;
Eu, ela, eles
Qualquer conversa é sempre boa, mesmo quando se machuca
No fim de todas sempre volto para onde parti; para mim,
Eu, sujeito e objeto
A questão é o indivíduo e não a linguagem
O que é? Qual a sua extensão? Pode-se apontá-lo?
No entanto, não se deve dizer “indivíduo”. O “indivíduo” está no geral
Não se “ofendeu” de pateta o “indivíduo”, e sim, o Indivíduo
Não se compreendeu erroneamente as palavras, e sim, a pessoa.
“Todos os atributos do Indivíduo virão do geral, isto não passa de uma ficção!”
E quem disse a primeira palavra?
“Pensando melhor, é patético sim” - o que me garante que eu estava em erro antes e agora não
“É evidente, posso dizer que isto se refere a aquilo”, como se aquilo possuísse a materialidade do tijolo esfarelado, aquele, com o qual esmaguei a cabeça do pombo
Atributos dariam a “direção”?
Um grande mal é naturalizar, cristalizar o movimento na pureza ideal de um diamante lapidado por bilhões de mãos cegas
De ti tenho só o que interpreto, e quando percebo que os meus sentidos te captam, ora vulgar ora graciosa, vejo a força de meus pais
Posso torna-me uma criança toda vez que me ligo a ti e ao mundo?
Que eu alcance a liberdade, despir-me do que chamam de História?
Chegar ao instante em que se pode dizer que o único atributo que possuo, que é a condição, é o de Lucianizar? Uma só ação, movimento contínuo que sou
Como são belas todas estas andorinhas
Me acordam todas as manhãs e nem as percebo
Só quando preciso agarrar-me a qualquer coisa que seja, para não cair de vez, que as percebo e digo que são lindas... e o meu coração se enche
E se na ocasião elas não estiverem por perto, digo que as nuvens é que são lindas
E quando tudo que está por perto me causa náusea, digo que o que é lindo são os que não vejo mais e sorrio
“Mas o que há em ti que as fazem "lindas"?”
Estão distantes. Inalcançáveis
Então diria que ela, que amanhã passará por ti na biblioteca, é “linda”?
Não. Diria que é linda
“Como pode dizer que algo é algo que não conhece? A distância não dá margem à certeza, falta trato”
Acredita que há um anel em seu dedo?
Olha esta chuva que nos molha! Me diga, por que “chuva”?
Eu só vejo água, indo de um lugar ao outro, um movimento
Vejo o meu espírito igualmente num movimento
a cada palavra que falo, a cada fase do movimento
Olha aquele pássaro! O que está mais alto
Quando ele se tornou um pássaro? Quando o ovo na barriga da sua mãe foi fecundado?
No que você vê “a” criação, há apenas movimento
Me diga o que deseja?
Disso vem todo o sofrimento ou toda a esperança, que no fim dá no mesmo
Mesmo que o que se procura é encontrado, seja numa reitoria ou num auditório
Um “acidente” selecionado por outro “acidente”; é só isso
Observo o espiralar com a mão esquerda,
Contínuo, um movimento
Veja! , um homem preto jogando a mesa pela escadaria da biblioteca
“E por que o faz?”
E como perguntar: “9”?
Pensar é conhecer?
Pensar é querer?
Pensar é amar?
Pensar é criar?
Os seus braços fortes arremessam uma mesa pela escada, e junto ao barulho se vê
o mais belo dos sorrisos... Há ódio ou alegria? E por que um ou outro? “E por que surge tal questão?”
Um quadro para nós, um recorte, um homem preto e não apenas um homem
Se nascesse surdo o que lhe viria?
A angústia de não se decifrar o espiralar por não se ter coragem de se jogar ao movimento; caso contrário, havido o movimento, não haveria o verbo e verbo algum
Espiralar é esperar, compreender, desejar, esquecer, espiralar?
Certamente imaginação. Uma paixão
Uma paixão tal sólida no espírito que no fim da meditação se diz:
“Bem, ela ainda está aí e como a quero, voltemos à vida!”
Voltemos!
A beleza do instante, e os instantes são infinitos
Um sorrisolhar - riso e olhar; ato pertencente a uma única pessoa e percebido como tal unicamente por mim; um instante
Fecundá-te, outro instante
Provar tua buceta como a mais doce fruta,
Hidratar-me com o soro que é o teu suor,
Deitar e adentrar em ti, macia e infinitamente bela como a relva, tudo um instante
Não é uma questão de duração; não é temporal
Purificar a folha da sua fétida brancura
Criar
Veja!
Estas cadeiras, o homem preto, o chão, os sons, o pombo esmagado, todos os tetos acima de nós, todos os livros, Espinosa, Gilberto Freyre, os teus cachos, todo edifício, todos os edifícios em nossa volta, as mangueiras, os meninos que no fim do ano comem as mangas ainda verdes e não passam mal apesar dos pais afirmarem o contrário, a luz, a neve que nunca vimos, o que jamais houve, Neimar, até todas as pedras que sustentam o mundo, tudo se dissolve em sal
A vontade deve tudo
“Pode-se recriar o sentido da vida?” Não, absolutamente!
Só há criação, movimento, jamais desconstrução, só criação

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.