24.12.08

Natal

O guardador de rebanhos - VIII

[213]


Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.


Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem


E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!


Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz


E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.


A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.


Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.


Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
..........................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.


A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.


A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.


Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.


Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade


Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.


Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
.................................................................................

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
....................................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?


Alberto Caeiro 08-03-1914

22.12.08

A utilidade pode fundamentar o esquecimento dela mesma?

Eu sabia que tinha algo escrito a esse respeito em algum lugar.

Qual a justificativa de perseguir algum projeto em especial? Um projeto deve ter, segundo alguns, relevância teórica e não sei bem o que é isso. Para alguns o critério é pragmático, o que é, servi para algo. Para outro deve ser uma justificativa existencial ou sirva, antes de tudo, para quem o faz. Eu, como cientista social, surgi e guiei-me primeiramente pelo segundo critério, motivo pelo qual ingressei nas ciências sociais. Era óbvio! Uma ciência deste tipo daria as respostas para os dilemas de nosso país e mundo. Estas respostas eram necessárias e transcendiam a satisfação e prestígio individuais, sendo antes um dever. O cientista social era um indivíduo que havia escolhido contribuir para um bem maior, a sociedade, da mesma forma que os engenheiros, médicos, operários, lixeiros fazem também a sua parte – se bem que, se todos nós cientistas sociais pararmos com nossos trabalhos não será nada comparado ao caos causado por um mês de greve dos lixeiros de qualquer cidade. A despeito disso ser verdade ou não, a despeito dos que acreditam que as ciências do social não podem dar respostas suficientes a prestarem contas a todo esforço já feito dentro das suas extensas fronteiras por uma massa de homens e mulheres, afirmo que minha crença se mantém e que além de me manter com os pés firmes no segundo critério, como está claro, não pretendo me desvencilhar do último critério, justo o que poucos de nós admitem. Sobre o primeiro critério, penso que a justificativa maior para que ele seja a justificativa que deve nortear qualquer trabalho acadêmico seja evitar que não andemos em círculos. Ter conhecimento da bibliografia que discute seus problemas teóricos é o mínimo que se espera para um projeto que traga algo a mais e resolva coisas que outros - muitos outros em quase todas as situações -, não deram conta de dar respostas convincentes ou que não sejam mais válidas para hoje. Não irei citar autores ainda; temos muito espaço para isso, certamente escreverei muito sobre isso. Os três pontos colocados, brevemente e porcamente, já dão o que preciso para lançar a pergunta que faço e que cientistas sociais não fazem muito para si: o que espero das ciências sociais e o que considero que elas sejam, pelo menos o que seja o meu campo especifico dentro das inúmeras frentes de estudo, quanto irá determinar em meu trabalho? E mais, e fundamentalmente, por que sigo essa orientação? A resposta que espero de cada um é a mesma que espero de mim: que eu tenha a partir dessa reflexão clareza do que sou e faço. Não espero nada politicamente correto e retórico.

Irei tentar me pautar daqui em diante pelo que não espero, pela clareza e sobriedade.

14.12.08

Sobre ser útil ou sobre a utilidade

Vou dar início a uma discussão que não sei de onde vem.
Como início, vou começar pela própria origem e significados.

do Lat. utile

adj. 2 gén.,
que serve para alguma coisa;
que pode ter algum uso ou serventia;
proveitoso;
vantajoso;
prestável;
determinado por lei de trabalho (dia);

s. m.,
utilidade;
aquilo que é útil.

juntar o - ao agradável:
aumentar um benefício com outro.

11.12.08

Atualizar a vida

Um cara que nunca considerei muito me disse hoje: "pense que o seu trabalho irá ajudar o maior número possível de pessoas e a entrevista irá ser perfeita". Engraçado, era o que eu pensava há seis anos atrás. Por que isso hoje me soa fantástico? Era algo dado para mim querer ser útil. Era uma obrigação ser útil. Era o fim que tinha posto para minha vida, ser útil. Me choca saber que mudei tão depressa. Troquei por tão pouco meu valor que julgava me definir e me distinguir. Em troca, recebi um vazio.

Meu amigo sugeriu que eu atualizasse esse blog. "Sim, ele será atualizado sempre." Aqui entrará só o que e quem me faz bem.

2.12.08

Bem, passou por mim de mãos dadas. Do banco lhe observei subi a escada e sumir. No banco permaneci imóvel. Fui para casa. Existe uma hora que escrever é difícil. Quando não há contraste entre eu e mundo e qualquer palavra sou eu. Esforço-me para não dizer seu nome. E me esforço mais ainda para fingir que não me importo. Essa poesia de tarde, sob este sol, esta montanha de coisas para arrumar, esta pilha de papeis, estes livros insuportáveis, estas teses, você que não me deixa seguir. Ainda penso em você todos os dias. Sei que não me procurará. Sei que não irei te procurar. Sei que é um caso perdido.

Vou tentar dormir neste resto de tarde. Quem sabe sonhar.

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.