4.5.06

Manufacturamos Realidades

Damos comummente às nossas ideias do desconhecido a cor das nossas noções do conhecido: se chamamos à morte um sono é porque parece um sono por fora; se chamamos à morte uma nova vida é porque parece uma coisa diferente da vida. Com pequenos mal-entendidos com a realidade construímos as crenças e as esperanças, e vivemos das côdeas a que chamamos bolos, como as crianças pobres que brincam a ser felizes.
Mas assim é toda a vida; assim, pelo menos, é aquele sistema de vida particular a que no geral se chama civilização. A civilização consiste em dar a qualquer coisa um nome que lhe não compete, e depois sonhar sobre o resultado. E realmente o nome falso e o sonho verdadeiro criam uma nova realidade. O objecto torna-se realmente outro, porque o tornámos outro.
Manufacturamos realidades. A matéria-prima continua a ser a mesma, mas a forma, que a arte lhe deu, afasta-a efectivamente de continuar sendo a mesma. Uma mesa de pinho é pinho mas também é mesa. Sentamo-nos à mesa e não ao pinho. Um amor é um instinto sexual, porém não amamos com o instinto sexual, mas com a pressuposição de outro sentimento. E essa pressuposição é, com efeito, já outro sentimento.
in O livro do Desassossego

17.4.06

"Sei que meu olhar deve ser o de uma pessoa primitiva que se entrega toda ao mundo, primitiva como os deuses que só admitem vastamente o bem e o mal e não querem conhecer o bem enovelado como em cabelos no mal, mal que é bom.

Não quero perguntar por que, pode-se sempre perguntar por que e sempre continuar sem resposta: será que consigo me entregar ao expectante silêncio que se segue a uma pergunta sem resposta? Embora adivinhe que em algum lugar ou em algum tempo existe a grande resposta para mim."

Clarice,
extraído de Água Viva

16.4.06

A revolução silenciosa

Gödel (1906-78) foi o mais importante lógico do séc. XX. O seu teorema da incompletude da aritmética pôs fim ao sonho empirista e formalista dos positivistas. Mas o verdadeiro alcance das suas ideias foi tranquilamente ignorado praticamente até hoje. Gödel demonstrou que a ideia de que a matemática é apenas um jogo de símbolos é falsa. E com este teorema refutou também a epistemologia positivista, que pretendia reduzir o conhecimento a priori ao conhecimento da linguagem. De uma só vez, Gödel abria as portas ao racionalismo e à ideia de que o conhecimento da matemática não é meramente um conhecimento linguístico; a razão humana, sussurra o teorema de Gödel, é fonte de conhecimento substancial.
Contudo, Gödel viveu e morreu na relativa obscuridade. A sua personalidade reclusa impedia-o de tentar persuadir os seus pares. Ao invés, limitava-se a ir para casa conceber demonstrações definitivas dos seus pontos de vista. Foi assim que ao assistir às reuniões dos positivistas lógicos, como jovem estudante, estes não desconfiavam que o inimigo estava entre eles: alguém que repudiava totalmente o empirismo, o logicismo e o culto de Wittgenstein. Quando Gödel dizia alguma coisa era de forma precisa, directa e porque tinha provas sólidas do que afirmava. Anunciou pela primeira vez o seu revolucionário teorema na cidade natal de Kant, Königsberg, em Outubro de 1930, quando tinha apenas 24 anos. No colóquio participavam alguns dos mais importantes filósofos e lógicos do seu tempo: Carnap, Reichenbach, Hans Hahn e von Neumann, entre outros. No final do colóquio, no período dedicado à discussão, Gödel anunciou o seu resultado revolucionário:

"Podemos mesmo (admitindo a consistência da matemática clássica) dar exemplos de proposições (do género das de Goldbach e Fermat) que de facto são contextualmente verdadeiras mas não são demonstráveis no sistema formal da matemática clássica."

E foi tudo.

Se Gödel estava à espera de uma bateria de perguntas sobre como era tal coisa possível, enganou-se. Ninguém lhe ligou, apesar de a sua afirmação, a ser verdadeira, deitar por terra o formalismo de Hilbert e a epistemologia positivista. Foi a revolução intelectual mais silenciosa a que o mundo assistiu. Nem Carnap percebeu o alcance do que Gödel estava a afirmar, apesar de este ter falado com ele pessoalmente sobre o assunto. Só von Neumann percebeu o que se estava a passar, e resgatou a humanidade da maior vergonha intelectual da história. O que é particularmente notável, dado que von Neumann era um partidário do formalismo de Hilbert, que o teorema de Gödel refutava definitivamente. Algumas semanas mais tarde, von Neumann descobriu sozinho o chamado segundo teorema de Gödel e escreveu-lhe comunicando-lho. O jovem Gödel respondeu-lhe pacientemente dizendo que o grande professor tinha realmente razão: o segundo resultado constava também do artigo que estava pronto para publicação, e era apenas um corolário do primeiro teorema.

Perto do final da sua vida, Einstein dizia que ia ao seu gabinete, em Princeton, para ter o privilégio de caminhar e conversar com Gödel. Partindo desses passeios dos dois grandes pensadores do nosso tempo, Goldstein (filósofa e romancista) apresenta com poesia e elegância, ritmo e graça, clareza e profunda humanidade, uma das grandes aventuras intelectuais de sempre.

15.4.06

l u g a r e s
ali olha!
bada do lado, c
f
longe, u m o
trom_ a ç a
m
d osfunoc
esce pressa u
ndo
bi perto n
su
s
t
o
p
!
Tudo que é concreto se encareta aqui!
(tente e veja)

Hoje em dia não se pode fazer uma revolução sem sacar de HTML!

12.4.06

Os prazeres comuns à alma e ao corpo dependem inteiramente das paixões e, assim, as pessoas cujas paixões podem emocionar mais profundamente são capazes de aproveitar os mais doces prazeres desta vida. É verdade que elas podem também experimentar a maior amargura, quando não sabem como pôr tais paixões em bom uso e quando a fortuna trabalha contra elas. Mas o principal uso da sabedoria está em nos ensinar a ser mestre de nossas paixões e a controlá-las com tal destreza que os males que elas possam causar sejam perfeitamente suportáveis e mesmo tornem-se fonte de alegria.

Descarte - As paixões da alma, artigo 212, AT XI 488

10.4.06

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.