31.12.06

Receita de Ano Novo

Para você ganhar belíssimo Ano Novo
cor de arco-íris, ou da cor da sua paz,
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido
(mal vivido talvez ou sem sentido)
para você ganhar um ano
não apenas pintado de novo, remendado sem carreiras,
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser, novo
até no coraçao das coisas menos percebidas
(a começar pelo seu interior)
novo espontâneo, que de tão perfeito nem se nota,
mas com ele se come, se passeia,
se ama, se compreende, se trabalha,
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita,
não precisa expedir nem receber mensagens
(planta recebe mensagens? passa telegramas?).

Não precisa
fazer lista de boas intenções
para arquivá-las na gaveta.

Não precisa chorar de arrependido
pelas besteiras consumadas
nem parvamente acreditar
que por decreto da esperança
a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver.

Para ganhar um ano-novo
que mereça este nome,
você, meu caro, tem de merecê-lo,
tem de fazê-lo de novo, eu sei que não é fácil,
mas tente, experimente, consciente.

Dentro de você é que o Ano Novo
cochila e espera desde sempre.

Drummond

30.12.06

De onde vem esta angustiante necessidade de amar,
De ter alguém que não pode libertar-se de ti?

23.12.06

O guardador de rebanhos - VIII

[213]


Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra,
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.


Tinha fugido do céu,
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras,
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem


E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.


Não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!


Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três,
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz


E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz no braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras nos burros,
Rouba as frutas dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.


A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas,
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.


Diz-me muito mal de Deus,
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia,
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.


Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
mas os seres não cantam nada,
se cantassem seriam cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres".
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.
..........................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.


A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.


A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos a dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.


Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.


Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade


Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales,
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.


Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos,
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
.................................................................................

Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu no colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
....................................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus,
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?


Alberto Caeiro 08-03-1914

17.12.06

- Por que não posso te esquecer?
- Porque sofremos. De onde você acha que vem todas as preces e poesias?
- Peço que você não me esqueça. Pelo menos você não. Quero que leve alguma coisa de mim. Ainda que eu não te leia mais e nem te procure em sua casa, leve algo.
- Dizem que "pedir é mais bonito", mas não resolve.
- Sei disso. Nunca peço a ninguém. Uma vez ainda creio que você possa livrar-me deste cansaço do mundo que tenho. Dos burros que cagam por onde quero caminhar.

Eu

9.12.06

Orkut

Paixões: Eu e o mundo. Melhor, Nós.
Patologias da Modernidade aqui do lado,
Indicadores de desigualdade com Carine,
Neopopulismo para Mitre.

A chuva cai mansa,
Não acho assunto para escrever,
A música que escode o nome.

Lapa,
Juíz de Fora,
A filosofia.

Códigos para poucos,
Pessoas bacanas,
Nós.

8.12.06

Caçador de mim

Por tanto amor
Por tanta emoção
A vida me fez assim
Doce ou atroz
Manso ou feroz
Eu caçador de mim

Preso a canções
Entregue a paixões
Que nunca tiveram fim
Vou me encontrar
Longe do meu lugar
Eu, caçador de mim

Nada a temer senão o correr da luta
Nada a fazer senão esquecer o medo
Abrir o peito a força, numa procura
Fugir as armadilhas da mata escura

Longe se vai
Sonhando demais
Mas onde se chega assim
Vou descobrir
oque me faz sentir
Eu, caçador de mim

Luís Carlos Sá e Sérgio Magrão

3.12.06

















A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre.
E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.
Nascer liberto é a maior grandeza do homem, o que faz o ermitão humilde superior aos reis, e aos deuses mesmo, que se bastam pela força, mas não pelo desprezo dela.

Fernando Pessoa, in 'Livro do Desassossego'




1.12.06

Todo fim acaba por ser desvelar como meio. Aí está a idade da razão.

Qualquer meio é só agitação até que se perceba que é meio para meios.

Qualquer meio é regional e o todo não pode ser posto como fim.

Qualquer experiência desvela a finitude de qualquer meio.

Qualquer experiência é manifestação da finitude.

29.11.06

AS FÃS DO CHICO BUARQUE SÃO PIORES QUE AS DO RICKY MARTIN

Bem piores… Isso porque as fãs do astro porto-riquenho, segundo o senso comum preconceituoso, são ‘ignorantes’. “Coitadas”, todos dizem, “é tudo que elas têm…”.
Mas e as fãs de Chico Buarque? Elas são esclarecidas, têm boa formação escolar e acadêmica, conhecem outros idiomas, lêem bastante e às vezes até escrevem. Não, elas não são ‘ignorantes’. Pelo menos, não dentro desse critério idiota usado pela maioria burra para definir o que é ‘ignorância’.
As fãs do compositor de olhos ardósia são esclarecidíssimas. Mulheres do mundo, mulheres cosmopolitas, mulheres arrojadas, inteligentes, ousadas… São a favor do aborto e contra a pena de morte, porque as fãs do Chico Buarque flertam com algum esquerdismo ideológico; ou, pelo menos, são francamente anti-conservadoras.
Ou ainda podem ser conservadoras, talvez de ultra direita, mas suas opiniões sempre resultam de alguma pesquisa e seguem critérios lógicos. Independente da ideologia, ela sempre sabe defender muito bem seu ponto-de-vista.
E, sejamos honestos, são também elegantes. Podem ser moças ou velhas, ripongas ou patricinhas, ricas ou pseudo-proletárias da FFLCH; tanto faz. São sempre elegantes. Sabem compor bons visuais tanto com roupas caras da moda quanto com camisetas puídas de brechó.
Nem sempre são bonitas, é verdade, mas isso é só um detalhe. Elas são mulheres desprovidas de preconceitos estéticos, tanto mais quando são inequivocamente feias (porque, vocês sabem, a beleza é subjetiva, mas a feiúra é bem objetiva).
Elas adoram a poesia de Chico Buarque. Elas enaltecem suas letras. Algumas, sem dar na pinta que é por fanatismo, até gostam de seu timbre. Dizem, como se isso transformasse uma observação pessoal em axioma, que algumas músicas só ficam boas “na voz do Chico”. E todos e todas concordam.
As fãs de Chico Buarque são mulheres ocupadas. Mesmo quando não fazem nada elas são ocupadíssimas. Há livros para ler, filmes para ver, lugares para conhecer. Estão sempre em débito com as artes, com a cultura, com as vanguardas em geral.
Não são preconceituosas, mas não conseguem tolerar as fãs dos cantores populares. Consideram um grande absurdo esse fanatismo descabido por gente sem talento. Não poupam xingamentos ou ironias quando falam das fãs de Wando, Fábio Junior, Daniel, Leonardo, Alexandre Pires.
Um absurdo essa atração sexual idiota! Não compactual com o vexame de uma fã que se rebaixa sobremaneira apenas pela atração física, ou qualquer outro devaneio idiota em relação ao seu ídolo.
Elas são fãs de Chico Buarque. São fãs do compositor, do escritor, do poeta. E também do despojado jogador de futebol, do gente-boa que deve ter um ótimo papo no boteco, do elegantíssimo intelectual que passeia por Paris como se andasse pelo quintal da casa dos pais etc etc etc.
Idolatram, sem qualquer culpa, aquele que construiu uma carreira artística sempre dentro de rígidos e incontestáveis critérios de qualidade. O fanatismo se dá pelo talento, é uma atração estética, cultural, teórica talvez.
Até que ele surge no palco.
Toda a apreciação cultural dá vez aos gritos de “Lindo! Gostoso! Lindo!”. Elas choram, elas berram, elas o deixam ainda mais tímido. É exatamente o mesmo comportamento das fãs de todos aqueles cantores que elas tanto odeiam. Até o estúpido ‘karaokê coletivo’ elas fazem.
Algumas se organizam em caravanas, como fazem as odiadas fãs dos cantores populares. As de Chico não chegam a fretar uma kombi de Ermelino Matarazzo, mas trocam e-mails entre si, eufóricas, já combinando com que carro vão, juntas, ao espetáculo.
Chico não tem nada a ver com os tais cantores populares. Não mesmo. Mas suas fãs são idênticas às deles. São civilizadas, cultas e lindas até que finalmente abrem mão desse teatro idiota e passam a ser aquilo que sempre foram.
Talvez seja por isso que Chico Buarque faça pouquíssimos shows.

ps - Caso Grave e Infelizmente Corriqueiro: fã do Chico que também adora Diogo Mainardi.

Retirado de Gravatai Merengue: http://gravataimerengue.com/?p=95491977
Desciclopédia tem um tópico dedicado ao Chico: http://desciclo.pedia.ws/wiki/Chico_Buarque

pps - Eu gosto do Chico

ppps - valeu pelos links acima, Tião!

28.11.06

Depois duma noite de chuva

O mundo está incrivelmente belo,
As mulheres estão incrivelmente belas,
A comida está incrivelmente bela,
As mangas estão incrivelmente belas,
As máquinas estão incrivelmente belas.
E tudo isso porque eu, que não me via,
Estou incrivelmente belo!



Poeminho do Contra

Todos esses que aí estão
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!
(Prosa e Verso, 1978)
Fique à vontade, paranóica. Não há problema em você divulgar tudo o que já escrevi - que é realmente rídiculo como se deve ser. Não seja mais patética do que realmente é, aceite tudo isso de forma mais digna.
Seguindo o que o anônimo disse, você só é uma diversão para os raros momentos em que não tenho o que fazer, uma caricatura de fisionomia muito disforme e, pelo drama dos últimos dias, infeliz.
Só te amei no momento em que você ou eu escrevia. Momentos lindos, sem dúvida, mas não mais que isso. Nunca fui tolo para acreditar em algo além. Você é apenas um artefato de sonhos imediatos, não preciso ser baixo para que entenda a extensão do que falo.
Aproveite a raiva que tem de mim - não ódio, porque é fraca para esse tipo de coisa - e escreva uma poesia de tarde que só os seus "amigos" irão acolher por pena de ti.

17.11.06

Como a arte minimalista. Compor sobre uma pequena variação de poucas notas quando se quer que alguém que seja ligue. É tão pouco. Não é a solidão que me faz esperar por tão pouco. É que quase não preciso mais do que isso.

11.11.06

Há uma pilha de livros na minha frente. Talvez um artigo no monitor. Estou bem.

Minha barba e meus olhos ajudam a tornar tudo negro por aqui. Gosto desta cor.

Gosto deste tempo chuvoso e frio. Não é ruim sentir frio porque gosto de aquecer-me.

Fui decompondo um conceito dito por outro e cheguei a mim. Gosto disso.

Expliquei pro Anderson qual o sentido de decompor o que decompus. Também gostei disso. Gosto de ser pedante.

Não consegui contar as telhas que vejo pela porta do meu quarto que dá para a noite. As telhas são imensamente incontáveis. Gosto do meu lirismo.

Inventei uma piada vendo TV e minha mãe danou a rir. Gosto de fazer outros rirem. Sou bom nisso.

Descobri que hoje é o fim do mundo. Daqui a pouco vou para a cama que daqui vejo. Gosto de dormir quando tive um bom dia.

Penso em você sempre que escrevo. Minha escrita tem melhorado. Adoro tentar te impressionar.

Olho para tudo que está nesta página e vejo que posso. Amo os meus motivos por isso.

Estou largando aquele quase artigo de lado para escrever algo sobre mim. Isso sim, é ótimo!

10.11.06

Guia para ser ex-esquerdista

Servem para quem aceitou as famosas “propostas irrecusáveis” e assumiu cargos de chefia em grandes publicações da mídia monopolista ou em alguma grande empresa privada, que exigem silêncio ou declarações adaptadas aos interesses dos “patrões” (esquecendo-se de que não existem “propostas irrecusáveis” mas sim espinhas dorsais excessivamente flexíveis).

Não seriam casos isolados, afinal as redações desses órgãos da mídia privada estão apinhados de ex-comunistas, ex-trotskistas, ex-esquerdistas em geral, “arrependidos” ou simplesmente “convertidos” e que passam a vida inteira – como certos “intelectuais” das universidades, que ganham em troca amplos espaços na grande imprensa – a dizer que já não são o que foram, “limpando-se” aos olhos da burguesia dos seus “pecadilhos de juventude”.

Indispensável a referência a que “se é imbecil aos 20 se não se é radical, se é imbecil aos 40 se ainda se continua a sê-lo”, ou alguma alusão como passar “de incendiário aos 20 a bombeiro aos 40”, deixando no ar a afirmação de que se teve uma juventude agitada antes de chegar à idade da razão.

Um bom começo pode ser dizer que “o socialismo fracassou”, que “está decepcionado com a esquerda”, “que são todos iguais”. Já estará em condições de dizer que “não existe mais esquerda e direita”, que alguns que se dizem de esquerda na verdade são uma “nova direita”, são piores que a direita e que é melhor então ficar eqüidistante. Do ceticismo se passa fácil ao cinismo de “votar na direita assumida” para derrotar a “direita disfarçada”.

Outra via é criticar veementemente Stalin, depois de dizer que ele foi igual a Hitler – “os dois totalitarismos” –, afirmar que ele apenas aplicou as idéias de Lênin, para finalmente dizer que as origens do “totalitarismo” já estavam na obra de Marx. Dizer que Weber tem mais capacidade explicativa do que Marx, que Raymond Aron tinha razão contra Sartre. Que o marxismo é redutivo, só leva em conta a economia, que seu reducionismo é a base do “totalitarismo” soviético. Que não deixa lugar para a “subjetividade”, que reduz tudo à contradição capital–trabalho sem levar em conta as “novas subjetividades”, advindas das contradições de gênero, de etnia, do meio ambiente etc.

Não falar de Fidel sem fazer preceder seu nome com um “ditador” e chamá-lo de Castro em vez de Fidel. Desqualificar Hugo Chávez como “populista” e, ao mesmo tempo, como “nacionalista”, dando a este a conotação de “fanatismo”, “fundamentalismo”. Concentrar a atenção na América Latina sobre a Bolívia e a Venezuela como países “problemáticos”, “instáveis”, sem fazer nenhuma menção à Colômbia. Sempre que falar da extensão da democracia no continente, acrescentar “exceto Cuba”. Nunca falar do bloqueio norte-americano a Cuba, mas sempre da “transição” – deixando sempre supor que transitariam em algum momento para “democracias” como as que andam por aqui.

Dizer que a América Latina “não existe”, são países sem unidade interna – mencionar “cucarachos”, de forma bem depreciativa. Que nossa política externa tem de olhar para o alto, relacionar-se com as grandes potências e tratar de ser uma delas, em lugar de ficar convivendo com os paises da região e os do sul do mundo – África do Sul, Índia, China etc.

Pronunciar-se contra as cotas nas universidades, dizendo que introduzem o racismo numa sociedade organizada em torno da “democracia racial” – uma citação de Gilberto Freire e o silêncio sobre Florestan Fernandes são bem-vindos –, que o mais importante é a igualdade diante da lei e a melhoria gradual do ensino básico e médio para que todos tenham finalmente – vai saber quando, mas é preciso ter paciência – acesso às universidades públicas. Dizer, sempre, que o principal problema do Brasil e do mundo é a educação. Que empregos há, possibilidades existem, mas falta qualificação da mão-de-obra. Que o principal não são os direitos, mas as oportunidades – falar da sociedade norte-americana como a mais “aberta”.

Desqualificar sempre o Estado, como ineficaz, burocrático, corrupto e corruptor, em contraposição à “economia privada”, ao “mercado”, com seu dinamismo, sua capacidade de inovação tecnológica. Exaltar as privatizações da telefonia – “antes ninguém podia ter telefone, agora qualquer pobre diabo na rua anda falando em celular” – e da Vale do Rio Doce, calar sobre o sucesso da Petrobras ou afirmar ainda: “imagine se tivesse se tornado Petrobrax, como estaria melhor!”.

Em suma, há tantos motivos para quem tiver decidido deixar de ser de esquerda – bastaria o “farinha pouca, meu pirão primeiro” – e buscar ganhar a vida de costas pro mundo e pra sua própria biografia. O “mercado” retribui generosamente os que renegam os princípios em que um dia acreditaram.

Mas muito mais fácil é continuar a ser de esquerda. Nem são necessários pretextos, bastam as razões sobre o que é este mundo e o que pode ser o outro mundo possível.


Emir Sader

9.11.06

Já imaginei para a minha vida uma grande narrativa. Seria imensamente sofrida porque senão não seria grandiosa. Uma idéia que o império dos fatos me mostra, naturalmente, ingênua, dia após dia. Por mais esforço que se tenha muda-se muito pouco do início ao fim do parágrafo. É por vezes imensamente sofrível viver uma narrativa medíocre, uma narrativa que gire em torno de uma vida que nem eu mesmo levo a sério. Deixo aos grandes escritores a glória. Há poetas demais, músicos demais, arte demais. Ficarei somente aqui, com uma única pretensão. Dentro dela tentarei negar-te para quem sabe dar um passo a frente e finalmente encontrar-te, modestamente e até alegremente, sem a minha dor de sempre que eu acreditava legitimar os meus pedidos.

Expor-me cruamente nesta página não fará que me estenda as mãos. Tentar dar a este demoníaco laço que nos prende uma grandeza épica é para os que já morreram. A inquietação em que estou agora ao pensar que em poucos dias posso não mais vê-la não será superada se eu aceitar que amanhã tudo se resolverá ou que não me pertence mais.

7.11.06

"Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu, modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno"

Van Gogh, o Suicidado da Sociedade, Antonin Artuad

4.11.06

“À noite saí a passear com o petiz. É preciso dizer-lhe que todas as noites, já antes, vínhamos passear por êste mesmo caminho, até aquela enorme pedra isolada, lá embaixo perto da sebe, onde começam os pastos comunais: um lugar deserto e encatador. Caminhávamos de mãos dadas, como de costume; uma mãozinha bem pequena, de dedos delgados, gelados, porque ele sofre do peito. “Pápotchka”, diz ele, “pápotchka” “Que há?”, pergunto-lhe (via seus olhos cintilarem). “Como te tratou êle, papai!” “Que fazer, Iliúchka?” “Não faças a pazes com ele, pápotchka, de modo nenhum. Os alunos dizem que ele te deu 10 rublos por isso.” “Não meu pequeno, por coisa alguma do mundo aceitaria dinheiro dêle, agora.” (Êle se pôs a tremer, agarrou minha mão nas suas, beijou-a.) “Pápotchka, provoca-o a um duelo, na escola eles me infernam dizendo que és um covarde, que não te baterás, mas que aceitarás dele 10 rublos.” “Não posso provocá-lo a duelo, Iliúchka”, respondo-lhe, e lhe expus brevemente o que acabo de dizer ao senhor a êste respeito. Êle me escutou. “Pápotchka”, diz ele, no entanto, “não faças as pazes com aquêle homem; quando eu crescer, eu mesmo o provocarei e o matarei!” Seus olhos brilhavam com um clarão intenso. Apesar de tudo, era pai dele e tornava-se necessário dizer-lhe uma palavra de verdade: “É um pecado”, expliquei eu, “matar seu próximo, mesmo em duelo.” “Pápotchka, eu o derrubarei, quando for grande, farei saltar seu sabre de suas mãos e me lançarei sobre ele, brandindo o meu, e lhe direi: poderia matar-te, mas perdôo-te!” Está vendo, senhor, está vendo que trabalho se operou na cabecinha dele, durante esses dois dias? Só fazia pensar na vingança com um sabre e deve ter falado disso no seu delírio. Quando voltou da escola, cruelmente batido, soube de tudo e, o senhor tem razão, não voltará mais lá. Fico sabendo que êle se levanta contra a classe inteira, que provoca a todos; está exasperado, seu coração arde de ódio e então tenho medo por ele. Voltamos a passear. “Pápotchka”, diz ele, “ficarei rico, serei oficial e baterei todos os inimigos, o czar me recompensará, voltarei para junto de ti e então ninguém ousará...” Após um silêncio, continuou, com os lábios trêmulos como antes: “Pápotchka, que cidade de gente ruim essa nossa!” “Sim, Iliúchka, é uma cidade de gente ruim.” “Pápotchka, vamos morar em outra, onde não nos conheçam.” “Gostaria bem, Iliúchka, mudemo-nos; sòmente é preciso juntar dinheiro.” Rejubilo-me por poder assim distraí-lo de seus sombrios pensamentos; pusemo-nos a fazer projetos sobre a instalação numa outra cidade, a compra de um cavalo e de uma tieliega. “A mamãe e as manas montariam nela, nós as cobriríamos bem, nós mesmos caminharíamos ao lado, tu montarias de vez em quando, enquanto eu iria a pé, porque é preciso poupar o cavalo, todos não poderão ir ao mesmo tempo, seria assim que viajaríamos.” Ficou encantado, sobretudo por ter um cavalo o conduziria. Sabe-se que um menino russo não vê nada de mais belo que um cavalo. Nós tagarelamos muito tempo. “Deus seja louvado”, pensei eu, “distraí-o e consolei-o.” Foi anteontem de noite; no dia seguinte, voltou da escola bastante sombrio. À noite, por ocasião do passeio, permaneceu silencioso. O vento elevou-se, o sol desapareceu, sentia-se o outono e já estava escuro; estávamos tristes. “Pois bem, meu rapaz, como vamos fazer nossos preparativos?” Pensava retornar a conversa da véspera. Nem um palavra. Mas seus dedinhos tremiam na minha mão. “Isto vai mal”, disse a mim mesmo, “há novidade.” Chegamos, como agora, até aquela pedra; sentei-me nela, haviam empinado papagaios que estalavam ao vento. Havia bem uns trinta. É a estação agora. “Deveríamos nós também, Iliúchka, empinar o papagaio do ano passado. Consertá-lo-ei. Que fizeste dele?” Meu filho cala-se, olha para o lado, desviando a vista. De repente, o vento se põe a assobiar, levantando areia... Lança-se par mim, com seus dois braços enlaça-me o pescoço, abraça-me. Sabe que, quando os meninos são taciturnos e altivos, retêm muito tempo suas lágrimas, mas, quando elas brotam, por motivo dum grande pesar, não correm, mas jorram? Suas lágrimas ardentes inundaram-me o rosto. Ele soluçava, convulsivamente, apertava-me contra ele. “Pápotchka”, gritou ele, “meu querido pápotchka, como ele te humilhou!” Então os soluços dominaram-me e nos abalavam, enlaçados sobre esta pedra. Ninguém nos via então, exceto Deus. Talvez me leve isso em conta. Agradeça a seu irmão, Alieksiéi Fiódorovitch. Não, não açoitarei meu filho para causar-lhe satisfação!”


Dostoiévski

23.10.06

Me senti um Abraão quando um me perguntou quem é Você. Dizer o quê? Quem poderia compreender isto tudo além de Nós? Não é esquisito. Digamos, é no máximo pouco usual. Um estratégia de conquista pouco utilizada na história... só por mim que Eu saiba. Como é que as coisas tomam certas formas? Só um momento. Aceita um café? Acabei de fazer, forte para os fortes! Como Eu estava te dizendo há uma conjuntura para complicar mais as coisas, segundo o meu ponto de vista. Digamos que seja algo relacionado com as minhas condições objetivas de existência, quer dizer, de sobrevivência; hoje, por exemplo, não tenho um puto para te oferecer outra coisa que não seja café. Hum? Ah bom... Também tem isso de Eu não dizer as coisas de forma clara. Mas sempre digo tudo que quero. Quando assumo naturalmente um tom melancólico costumo ser mais feliz ao escrever: "por que será que Você não me ama?" Mas sou o mesmo de sempre, a coisa mais fria para alguns que me conhecem, igual uma rocha, e ombros para todos eles. Acham isso mesmo! É esse negócio de falar tudo com outras palavras que me mascara. Quando vou usar as palavras que não são outras não consigo dizê-las. Mas me esforço. Tenho usado música. No momento está tocando Sentimentale, do Bolling – percebe como estou mais sentimental? Música, palavras, café. Tenho escrito sempre escutando música. Talvez seja isto que faz que Eu consiga que ainda me leia. E é certamente o que me faz ter problemas em outras casas. Os imbecis – não idiotas, porque o idiota sou Eu – não entendem que as coisas têm que fazerem sentido. As coisas para mim têm que fazer sentido. É por isso que lembro de Abraão que levou o filho para o sacrifício. Quem o entenderia? Quem ele mais amava entendeu.

As coisas não se deram estranhas. A estranheza depende dos olhos de quem vê. Os olhos de quem vê podem ser o de todos os outros. Então, se é assim, quem vê? Até pouco tempo eu não via. Inconformado aceitei os sons que divergiam dos olhos e do tato que nada pegava. Assim compreendi. E não há como dizer a ninguém e nem a mim o que compreendi.

22.10.06

















Time que nos faz perguntar "de onde vem tanto amar?"
Time pelo qual não se está preso por vontade.

21.10.06

É difícil compreender por que diz que nosso encontro é em ti. Como deve ser isto?

Que nunca vamos deixar o medo já me parece uma certeza. Não vejo por que sofrer quando não se tem esperança. Também não consigo me ver te deixando, mesmo que seja por ninguém, para continuar só. Me preservei para ti. Ainda me preservo. Ignoro sorrisos, outros cachos, convites. Amanhã será assim. Depois de amanhã também. E com você, como é? Não é bela só para mim. Você deve ir a tantos lugares, onde há tantas pessoas. O que passa pelo seu coração? Não devo me preocupar com o fato de que outros certamente irão te perceber, porque, quanto a isso, ninguém pode nada. O mundo é tão grande e eu não posso com ele.

Quando se tornou única senti que eu poderia ter o mundo todo num só abraço. Bobagens de quem nunca vai crescer.

"Parvos" é uma boa palavra.

18.10.06

Pela janela do campus olho para a minha vontade de chuva. Quero que ela venha. Quero ela mesmo que me faça ficar até o fim de minha vida observando-a.

17.10.06

1. O que mais vejo é dinheiro público sendo investido em futilidades, do tipo a poética em algum grego. Vejo também uma pequena casta diariamente discutir qualquer coisa sempre respeitando o critério de certo ou errado, e ainda, sobre coisas que dificilmente farão qualquer sentido para eles. Entre duas montanhas há sempre um vale mesmo para que jamais viu um vale. Tudo isto talvez sirva para impressionar alguns imbecis numa mesa de bar - e se tiver uma imensa referência bibliográfica na sua cabeça, nem se fala! -, mas e daí?, posso impressionar muito mais gente com besteiras que aprendo na rua. E os velhos ressentidos? Destes, acho melhor não dizer nada.

2. Devo voltar para a rua em breve, lugar onde os conceitos permanecem na mesma altura do asfalto, onde quando se diz que algo é uma merda todos entendem, sentem o cheiro e dão descarga sem nunca precisar passar por banca alguma.

16.10.06

Obrigado pelo texto meu caro amigo. É no mínimo interessante.


De l’amour des femmes pour les sots
QUEDA QUE AS MULHERES
TÊM PARA OS TOLOS


Victor Henaux
Tradução de Machado de Assis



Advertencia

Este livro é curto, e talvez devera sel-o mais.
Desejo que elle agrade, como me sahe das mãos; mas é com pezar que me vanglorio por esta obra.
Fallar do amor das mulheres pelos tolos, não é arriscar ter por inimigas a maioria de um e outro sexo?
Diz-se que a materia é rica e fecunda; eu acrescento que ella tem sido tratada por muitos. Se tenho, pois, a pretenção de ser breve, não tenho a de ser original.
Contento-me em repetir o que se disse antes de mim; minhas paginas conscienciosas são um resumo de muitos e valiosos escriptos. Propriamente fallando, é uma comparação scientifica, e eu obteria a mais doce recompensa de meus esforços, como dizem os eruditos, se inspirasse aos leitores a idéa de aprofundar um tão importante exemplo.
Quanto á imparcialidade que presidio a redacção deste trabalho, creio que ninguém o porá em dúvida.
Exalto os tolos sem rancor, e se critico os homens de espírito, é com um desinteresse, cuja extenção facilmente se comprehenderá.



I

Il est des noeuds secrets, il est des sympathies.

Passa em julgado que as mulheres lêem de cadeira em materia de fazendas, perolas e rendas, e que, desde que adoptam uma fita, deve-se crer que a essa escolha presidiram motivos plausiveis.
Partindo deste principio, entraram os philosophos a indagar se ellas mantinham o mesmo cuidado na escolha de um amante, ou de um marido.
Muitos duvidaram.
Alguns emitiram um axioma, que o que determinava as mulheres, neste ponto, não era, nem a razão, nem o amor, nem mesmo o capricho; que se um homem lhes agradava, era por ter este apresentado primeiro que os outros, e que sendo este substituido por outro, não tinha esse outro senão o merito de ter chegado antes do terceiro.
Permaneceo por muito tempo esse systema irreverente.
Hoje, graças a Deus, a verdade se descobrio: veio a saber-se que as mulheres escolhem em pleno conhecimento do que fazem. Comparam, examinam, pesam, e só se decidem por um, depois de verificar nelle a preciosa qualidade que procuram.
Essa qualidade é... a toleima!

II

Desde a mais remota antiguidade, sempre as mulheres tiveram a sua queda para os tolos.
Alcibiades, Socrates e Platão foram sacrificados por ellas aos presumidos do tempo. Turenne, la Rochefoucauld, Racine e Molière, foram trahidos por suas amantes, que se entregaram a basbaques notorios. No seculo passado todas as boas fortunas foram reservadas aos pequenos abbades. Estribados nesses illustres exemplos, as nossas contemporaneas continuam a idolatrar os descendentes dos idolos das suas avós.
Não é nosso fim censurar uma tendencia, que parece invencivel; o que queremos é motival-a.
Por menos observador e menos experiente que seja, qualquer pessoa reconhece que a toleima é quasi sempre um penhor de triumpho. Desgraçadamente ninguém póde por sua propria vontade gozar das vantagens da toleima. A toleima é mais do que uma superioridade ordinaria: é um dom, é uma graça, é um sello divino.
"O tolo não se faz, nasce feito."
Todavia, como o espirito e como o genio, a toleima natural fortifica-se e estende-se pelo uso que se faz della. É estaccionaria no pobre diabo que raramente póde applical-a; mas toma proporções desmarcadas nos homens a quem a fortuna, ou a posição social cedo leva á pratica do mundo. Este concurso da toleima innacta e da toleima adquirida é que produz a mais temivel especie de tolos, os tolos que o academico Trublet chamou "tolos completos, tolos integraes, tolos no apogêo da toleima".
O tolo é abençoado do céo pelo facto de ser tolo, e é pelo facto de ser tolo, que lhe vem a certeza de que qualquer carreira que tome, hade chegar felizmente ao termo. Nunca solicita empregos, aceita-os em virtude do direito que lhe é proprio: Nominor leo. Ignora o que é ser corrido ou desdenhado; onde quer que chegue, é festejado como um cónviva que se espera.
O que oppor-lhe como obstaculo? É tão energico no choque, tão igual nos esforços e tão seguro no resultado! É a rocha despegada, que rola, corre, salta e avança caminho por si, precipitada pela sua propria massa.
Sorri-lhe a fortuna particularmente ao pé das mulheres. Mulher alguma resistio nunca a um tolo. Nenhum homem de espirito teve ainda impunemente um parvo como rival. Porque?... Ha necessidade de perguntar porque? Em questão de amor, o parallelo a estabelecer entre o tolo e o homem de siso, não é para confusão do ultimo?

III

Em materia de amor, deixa-se o homem de espirito embalar por estranhas ilusões. As mulheres são para elle entes de mais elevada natureza que a sua, ou pelo menos elle empresta-lhes as proprias idéas, suppõe-lhes um coração um coração como o seu, imagina-as capazes, como elle, de generosidade, nobreza e grandeza. Imagina que para agradar-lhes é preciso ter qualidades ácima do vulgar. Naturalmente timido, exagera mais ao pé dellas a sua insufficiencia; o sentimento de que falta muito, o torna desconfiado, indeciso, atormentado. Respeitoso até a timidez, não ousa exprimir o seu amor em palavras; exhala-o por meio de uma não interrompida serie de meigos cuidados, ternos respeitos e attenções delicadas. Como nada quer á custa de uma indignidade, não se conserva continuamente ao pé d’aquella que ama, não a persegue, não a fatiga com a sua presença. Para interessal-a em suas magoas, não toma ares sombrios e tristes; pelo contrario, esforça-se por ser sempre bom, affectuoso e alegre junto della. Quando se retira da sua presença, é que mostra o que soffre, e derrama as suas lagrimas em segredo.
O tolo, porém, não tem desses escrupulos. A intrepida opinião que elle tem de si proprio, o reveste de sangue frio e segurança.
Satisfeito de si, nada lhe paralysa a audacia. Mostra a todos que ama, e solicita com instancia provas de amor. Para fazer-se notar d’aquela que ama, importuna-a, acompanha-a nas ruas, vigia-a nas igrejas e espia-a nos espetaculos. Arma-lhe laços grosseiros. Á mesa, offerece-lhe uma fructa para comerem ambos, ou passa-lhe mysteriosamente com muito geito um bilhete de amores. Aperta-lhe a mão a dançar e saca-lhe o ramalhete de flôres no fim do baile. N’uma noite de partida, diz-lhe dez vezes ao ouvido: "Como é bela!" porquanto revela-lhe o instincto, que pela adulação é que se alcançam as mulheres, bem como se-as perde, tal qual como acontece com os reis. De resto, como nos tolos tudo é superficial e exterior, não é o amor um acontecimento que lhes mude a vida: continua como antes a dissipal-a nos jogos, nos salões e nos passeios.

IV

O amor, disse alguem, é uma jornada, cujo ponto de partida é o sentimento, e cujo termo inevitavel a sensação. Se é isto verdade, o ha a fazer, é esmbelecer a estrada e chegar o mais tarde possivel ao fim. Ora, quem melhor que o homem de espirito sabe perolar á beira do caminho, parar e colher flôres, sentar-se às sombras frescas, recitar aventuras e procurar desvios e delongas? Um caracol de cabellos mal arranjado, um comprimento menos apressado que de costume, um som de voz discordante, uma palavra mal escolhida, tudo lhe é pretexto para demorar os passos e prolongar os prazeres da viagem. Mas quantas mulheres apreciam esses castos manejos, e comprehendem o encanto dessas paradas á borda de uma veia limpida que reflecte o céo? Ellas querem amor, qualquer que seja a sua natureza, e o que o tolo lhes offerece é-lhes bastante, por mais insipido que seja.

V

O homem de espirito quando chega a fazer-se amar, não goza de uma felicidade completa. Atemorisado com a ventura, trata antes de saber porque é feliz. Pergunta porque e como é amado; se, para uma amante, é elle uma necessidade, ou um passatempo; se ella cedeu a um amor invencivel; enfim, se é elle amado por si mesmo. Crêa elle proprio e com engenho as suas magoas e cuidados; é como o Sibarita que, deitado em um leito de flôres, sentia-se incomodado pela dobra de uma folha de rosa. N’um olhar, n’uma palavra, n’um gesto, acha elle mil nuanças imperceptiveis, desde que se trata de interpretal-as contra si. Esquece os encomios q eu levemente o tocam, para lembrar-se sómente de uma observação feita ao menor de seus defeitos e que bastante o torturas. Mas, em compensação, desses tormentos, ha no seu amor tanto encanto e delícias! Como estuda, como estrahe, como saborêa as volupias mais fugitivas até a ultima essencia! Como a sua sensibilidade especial sabe descobrir o encanto das criancices frivolas, dos invisiveis attractivos, dos nadas adoraveis!
O tolo é um amante sempre contente e tranquilo. Tem tão robusta confiança nos seus predicados, que antes de ter provas, já mostra a certeza de ser amado. E assim deve ser. Em sua opinião faz uma grande honra á mulher a quem dedica os seus effluvios. Não lhe deve felicidade; elle é que lh’a dá e como tudo o que leva á exaggerar o beneficio, não lhe vem á idéa que se possa ter para com elle ingratidões. Assim, no meio das alegrias do amor, saborea ainda a embriaguez da fatuidade. Mas como, em definitivo, é elle proprio o objecto de seu culto, depressa o tolo se aborrece, e como o amor para elle não é mais que um entretenimento que passa, os ultimos favores, longe de o engrandecerem mais, desligam-n’o pela saciedade.

VI

O homem de espirito vê no amor um grande e serio negocio, occupa-se delle como do mais grave interesse de sua vida, sem distracção, nem reserva. Póde perder nelle algumas das suas qualidades viris, mas é para crescer em abnegação, em dedicação, em bondade. Supporta tudo a alguns dos seus votos, quando previne alguns dos seus desejos, longe de ensoberbecer-se, agradece com uma effusão mesclada de sorpeza. Perdoa-lhe generosamente todos os males que lhe causa, porque, muito orgulhoso para enraivecer-se ou lastimar-se, não sabe provocar, nem a piedade que enternece, nem o medo que lhe faz calar. Oh! que inferno, se a má ventura lhe depara uma mulher bella e má, uma namoradeira fria de sentidos, ou uma moça de rabugice precóce!
Soffre então vivamente com a perfidia da mulher amada, mas desculpa-a pela fragilidade do sexo. A sua indulgencia póde então conduzil-o á degradação. Elle segue a olhos fechados o declive que o arrasta ao abysmo, sem que a queixa, a ambição, a fortuna possam retel-o.
O nescio escapa a estes perigos. Como não é elle quem ama, é elle quem domina. Para vencer uma mulher finge, por alguns momentos o excesso de desespero e da paixão; mas isso não passa de um meio de guerra, tatica e cerco para enganar e seduzir o inimigo. Logo depois recobra elle a tyrannia e não abdica mais. Para entreter-se nisso, tem o tolo o seu methodo, as suas regras, a sua linha de conducta. É indiscreto por principio, porquanto divulgando os favores que recebe, compromette a que lhe concede e ao mesmo tempo afasta as rivalidades nascentes. É susceptivel pela razão, cioso pelo calculo, afim de promover esses proveitosos amúos, que lhe servem, a seu grado, para conduzir a uma ruptura definitiva, ou para exigir um novo sacrificio. Mostra a sua indifferença, indicando pouca confiança nas provas de sympatia que lhe dão. N’um baile, prohibindo á sua amante de dançar, não faz caso della de proposito. Afflige-a com aparencias de infidelidade, falta á hora marcada para se encontrarem, ou depois de se ter feito esperar, vem dando desculpas equivocas de sua demora. Habil em semear a inquietação e o susto, faz-se obedecer á força de ser, e acaba por inspirar uma affeição sincera á força de promovel-a.

VII

O homem de espirito, assustado com o vacuo immenso, que deixa no coração uma affeição que se perde, só rompe o laço que o prende á causa de dilacerações interiores.
Como bem se disse, sendo preciso um dia para conseguir, é preciso mil para se reconquistar.
Mesmo no momento em que volta a ser livre: quantas vezes um sorriso, um meneio de cabeça, uma maneira de puxar o vestido, ou de inclinar o chapellinho de sol, não o faz recahir no seu antigo captiveiro!
De resto, a mulher, a quem elle tiver revelado o segredo do seu coração, ficará sempre para elle como sêr aparte. Não a esquece nunca.
Morta, ou separado, nutre por aquella que a perdeu longas saudades. Perseguido pela lembrança que della conserva, descobre muitas vezes que as outras mulheres por quem se apaixona só têem o merito de se parecerem com ella. Dá-se elle então a comparações que o desvairam, que o irritam, que o põem fóra de si, exigindo no seu trajar, no seu andar e até no seu fallar, alguma cousa que lhe recorde o seu implacavel ideal.
E se é elle o abandonado, que de torturas que soffre!
Viver sem ser amado parece-lhe intoleravel. Nada pode consolal-o ou distrahil-o.
No caso de tornar a ver os sitios que foram testemunha da sua felicidade, evoca á sua memoria mil circunstancias perseverantes e crueis. Alli está a cerca cheirosa, cujos espinhos rasgaram o véo da infiel; aqui, o rio que a medrosa só ousava atravessar amparada pela sua mão; além está a alameda, cuja arêa fina parece ter ainda o molde de seus ligeiros passos. Contempla na janella as longas e alvas cortinas, no peitoril os arbustos em flôr, na relva a mesa, o banco, as cadeiras em que outr’ora se sentaram.
É possível que ella tenha mudado tão repente? Pois não foi ainda hontem que de volta de um passeio ao bosque, lhe enxugou o suor da testa, e que se lhe prendia em doce e extranho amplexo?... Hoje, nem mais doçuras, nem mais apertos de mão, nem mais dessas horas ebrias em que todo o passado ficava esquecido! Elle está só, entregue a si mesmo, sem força, sem alvo: é o delyrio do desespero.
O tolo está ácima dessas miserias. Não o assusta um futuro prenhe de qualquer inquietação afflictiva. Sempre acobertado pela bandeira de inconstancia, desfaz-so de uma amante sem luta, nem remorso; utilisa uma traição para voar a novas aventuras. Para elle nada ha de terrivel em uma separação, porque nunca suppõe que se possa collocar a vida n’uma vida alheia, e que fazendo-se uma habito dessa communidade de existencia, faz-se pouco novamente soffrer, quando ella tiver de quebrar-se.
Da mulher, que deixa de amar, elle só conserva o nome, como o veterano conserva o nome de uma batalha para glorificar-se, ajuntando-o numero de suas campanhas.

VIII

Ha uma época em que custa-se muito a amar. Tendo visto e estudado um pouco a mulher, adquire-se uma certa dureza que permite approximar-se sem perigo das mais bellas e seductoras. Confessa-se sem rebuço a admiração que ellas inspiram, mas é uma admiração de artista, um enthusiasmo sem ternura. Além disso ganha-se uma penetração cruel para ver, atravez de todos os artificios de casquilha, o que vale a submissão que ellas ostentam, a doçura que affectam, a ignorancia que fingem. E prenda-se um homem nessas condições!
De ordinario é trinta a trinta e cinco, annos, que o coração do homem de espirito fecha-se assim á sympatia e começa a petrificar-se. É entretanto possivel que nelle tornem a apparecer os fogos da mocidade, e que elle venha a sentir um amor tão puro, tão fervente, tão ingenuo, como nos frescos annos da adolescencia; longe de ter perdido as perturbações, as aprehensões, os transportes da alma amorosa, sente-os elle de novo com emoção mais profunda e dá-lhes um preço tanto mais elevado, quanto elle está certo de não os ver renascer.
Oh! então lastima-se o pobre insensato! Eil-o obrigado a ajoelhar-se aos pés de uma mulher para quem é nada o merito de caminhar pouco a pouco atraz de sua sombra, de fazer exercicio em torno aos seus vestidos, de se extasiar diante de seus bordados, de lisonjear os seus enfeites. Ai, triste! Esse longos supplicios o revolta, e, Pygmalião desesperado, afasta-se de Galatéa, cujo amor se não póde reanimar.
Esses symptomas de idade são desconhecidos ao tolo, porquanto cada dia que passa não lhe faz achar no amor um bem mais caro, ou mais dificil a conquistar. Não tendo sido, nem melhorado, nem endurecido pelos revezes da vida, continuando a ver mulheres com o mesmo olhar, exprime-lhes os seus amores com as mesmas lagrimas e os mesmos suspiros que lhe reserva para pintar os antigos de paixão, vem facilmente a persuadir-se que é amado. Longe de fugir persevera e – triumpha.

IX

O homem de espirito é o menos habil para escrever a uma mulher.
Quando se arrisca a escrever uma carta, sente difficuldades incriveis. Desprezando o vasconço da galanteria, não sabe como se hade fazer entender. Quer ser reservado e parece frio; quer dizer o que espera e indica receio; confessa que nada tem para agradar, e é apanhado pela palavra. Commette o crime de não ser commum ou vulgar. As suas cartas sahem do coração e não da cabeça; têem o estylo simples, claro e limpido, contendo apenas alguns detalhes tocantes. Mas é exactamente o que faz com que ellas não sejam lidas, nem comprehendidas. São cartas decentes, quando as pedem estupidas.
O tolo é fortíssimo em correspondencia amorosa e tem consciencia disso. Longe de recuar diante da remessa de uma carta, é muitas vezes por ahi que elle começa. Tem uma collecção de cartas promptas para todos os gráos de paixão. Allega nellas em linguagem bruta o ardor de sua chama; a cada palavra repete: meu anjo, eu vos adoro. As suas formulas são emphaticas e chatas; nada que indique uma personalidade. Não faz suspeitar excentricidade ou poesia; é quanto basta; é mediocre e ridiculo, tanto melhor. Effectivamente o extranho que ler as suas missivas, nada tem a dizer; na mocidade o pai da menina escrevia assim; a propria menina não esperava outra cousa. Todos estão satisfeitos, até amigos. Que querem mais?

X

Enfim, o homem de espirito, em vista do que é, inspira ás mulheres uma secreta repulsa. Ellas se admiram com o ver tímido, acanham-se com o ver delicado, humilham-se com vel-o distincto.
Por muito que elle faça para descer até ellas, nunca consegue fazel-as perder o acanhamento; choca-as incommoda-as, e esse acanhamento, de que elle é causa, torna frias as conversações mais indifferentes, afasta a familiaridade e assusta a inclinação prestes a nascer.
Mas o tolo não atrapalha, nem offusca as mulheres. Desde a primeira entrevista, elle as anima e fraternisa-se com ellas. Eleva-se sem acanhamento nas conversas mais insulsas, palra e requebra-se com ellas. Comprehende-as e ellas o comprehendem. Longe de se sentirem deslocadas na sua companhia, ellas a procuram, porque brilham nella. Podem diante delle absorver todos os assumptos e conversar sobre tudo, innocentemente, sem consequencia. Na persuasão de que elle não pensa melhor, nem contrario a ellas, auxiliam o triste, quando a idéa lhe falta, suprem-lhe a indigencia. Como se fazem valer por elle, é justo que lhes paguem, e por isso consentem em ouvil-o em tudo. Entregam-lhe assim os seus ouvidos, que é o caminho do seu coração, e um bello dia admiram-se de ter encontrado no amigo complacente um senhor imperioso!

XI

Comprehende-se, por este curto esboço, como e quanto differem os tolos e os homens de espirito nos seus meios de seducção. A conclusão final é, que os tolos triumpham, e os homens de espirito falham, resultado importante e deploravel, nesta materia sobre tudo.

XII

Depois de ter indagado as causas da felicidade dos tolos, e da desgraça dos homens de espirito: perderemos tempo precioso em accusar as mulheres? Não hesitamos em deitar as culpas sobre os homens de espirito, como fez o profundo Champcenets.
Porque não estudam os tolos, diz-lhes este autor, para conseguir imital-os? Hade custar-vos muito fazer um tal papel: mas ha proveito sem dezar? E depois, quando assim sois a isso obrigado, visto como não vos dão outro meio de solução, querer subtrahir o bello sexo ao imperio dos tolos, descortinando-lhe a perversidade do seu gosto, é cousa que ninguém deve pensar, é uma loucura; fôra o mesmo que querer mudar a natureza, ou contrariar a fatalidade.
Por quanto, ficai sabendo, continua Champcenets, que as mulheres não são as senhoras de si proprias; que nellas tudo é instincto e temperamento, e que portanto ellas não podem ser culpadas de suas preferencias. Só respondemos pelo que praticamos com intenção e discernimento. Ora, qual dellas póde dizer que predilecção a impele, que paixão a obriga, que sentimento a faz ingrata, ou que vingança lhe dicta as malignidades? Debalde procurareis nellas tão cruel prodigio; nenhuma é cumplice do mal que causa; a este respeito, o seu estouvamento attesta-lhes a candura.
Porque vos obstinaes em pedir-lhes o que a Providencia não lhes deu? Ellas se apresentam bellas, appetitosas e cégas: não vos basta isto? Querel-as com juizo, penetrantes e sensiveis, é não conhecel-as.
Procurai as mulheres nas mulheres, admirai-lhes a figura elegante e flexivel, affagai-lhes os cabelos, beijai-lhes as mãos mimosas; mas tomai como brinquedo o seu desdem, aceitai os seus ultrages sem azedume, e ás suas coleras mostrai indifferença. Para conquistar esses entes frageis e ligeiros, é preciso atordoal-os pelo rumor dos vossos louvores, pelo fasto do vosso vestuario, pela publicidade de vossas homenagens.

XIII

Sim, sim, é de mister ousar tudo para com as mulheres.


Fim

15.10.06

Luto para não ter a vontade de esquecer tudo e dizer adeus. Este mundo que tento sustentar parece não me querer. Mudo, escuto-o: "Esta terra é muito dura para você. Não há lugar para o teu arado. Não há lugar para o seu cultivo. Crie o teu mundo. Siga para onde não há pessoas. Ache algo e chame de casa. Eu não te acompanharei. Não há quem te acompanhe. Quantas vezes já tentou? Tu é só. Isto não é o fim. Isto é. Esta noite não é escura porque ela somente é. Esta manhã não será bela porque ela somente é. Não é única porque é você que a faz insubstituível. O que mais quer escutar? Não sou eu que lhe faço dor, e ninguém se deleita com ela."

11.10.06

Senti-me como aquela fumaça trêmula
Senti frio naquela sala de projeção
Senti uma ponta me maltratando

Novamente um belo filme

Este improviso ao escrever
Esta dor de voltar para casa
Esta será mais uma noite insone em frente da máquina

7.10.06

Tu tá certo Vinícios
Acho que chegou os dias em que ela não mais iria me ler
Sem que tenha me deixado

Tu tá certo, são só inícios
Devo procurar ao menos ser fiel a mim mesmo
E aceitar a depressão como se aceita um filho

5.10.06

Parece um sapato de boneca.

A coisa diz: “Por que me chama ao invés de olhar para mim? Estou ao alcance de tuas mãos. Me abrace. Me compreenda.” Nós, a princípio dois, nos retraímos. Conhecer por um nome que possui inúmeros nomes que possuem inúmeros nomes. E a coisa ainda acena e eu te digo que ela acena, com inúmeros nomes, porque os nomes já são a sua própria expressão. As palavras que partilhamos ao nos repetirrmos possuem inúmeros nomes que são anteriores ao nosso primeiro contato. Porém damos a estes inúmeros nomes os nossos próprios inúmeros nomes porque o nosso contato é uma experiência única, um agora como agora ao me ler. Se conhecêssemos menos nomes, outros nomes, a coisa abrir-se-ia na possibilidade de ser outra. Mas entre nós poderia criar-se outra coisa? Criar? Temos tanto poder? Penso que é como um filho; é nós e não é nós. Não haveria contato se não falássemos os mesmos nomes, ou se quiser, se não residíamos num mesmo pronome. Os nomes que damos podem dizer que a coisa não exista ou seja intocável, inalcançável, e será até que nosoutros diga que assim é.

Certamente é o que quer, mais que o sexo, não acordar só. Mesmo que a boca que te tire do sono não seja a minha. Quero acordar com você do meu lado. Um frágil corpo nu que me agarre numa difícil manhã fria, que me impeça o cotidiano. Esqueceremos do mundo e retornaremos ao sono. É neste o momento que digo a vida ideal, um eterno retornar ao teu sono depois do inevitável despertar. Porém, ideal.

Significou-me muito. Quanto eu já me desdobrei para impressioná-la. Tanto me desdobrei que aprendi nas horas intermináveis na biblioteca adaptar-me a ler sem que sua imagem me distraísse. Adaptei-me ao alimento escasso, as tuas migalhas me faziam ter uma boa noite. A imaginação voava sem qualquer resistência do ar e até esquecia que sem resistência não pode ter vôo algum. A resistência é o palpável, o contato. É tão fácil ler-te. Quando sinto falta ler-te aplaca a minha vontade. Mas a vontade de morder a sua panturrilha, Por Deus!, nada aplaca. Deus sabe como a quero, e sabe como é fraca a sua criação. Deus fez o mundo muito grande. Há tantas esquinas. Há tantas cantinas, não é verdade. Por que eu tive de descer aquela escada justo naquele momento e ir àquela cantina justo naquela hora, e sentar justo naquele lugar e você se aproximar justo naquele momento e eu ter que ouvir o seu nome justo daquela forma? Deus e as suas coincidências. Não era para eu estar lá aquele dia, fui só buscar um livro. Estou onde estão os livros. Acho que com você ocorre o mesmo.

Escrevi no segundo mês um poema pequenino, ingênuo como a infância de qualquer coisa.
Vamos ao cinema esta noite?/ Prometo que te levo uma flor/ Te recito um Neruda/ Vamos ao cinema esta noite?/ O filme poderá ser um triste que nos faz lembrar o quanto esperamos/ Ou feliz como um gostoso sorvete/ Vamos ao cinema esta noite?/ Entraremos de mãos dadas/ E nunca voltará sozinha

Irá escrever sequer uma linha endereçada a mim e que tenha o meu nome e não um “você”? Responderá a alguma carta um tanto inconveniente que te chegar? Tendo a achar que não e que se não faz nada disso é por lucidez e não medo como sempre pensei. É o que preciso. Sejamos “realistas”. O que sei de você? Que é linda e às vezes insuportável. Que usa um sapato preto que parece um sapato de boneca. Quais são teus sonhos e planos, mesmo que ninguém viva o quer? Por que seria eu a acompanhar-te? O mundo é grande, tão grande... O que sabe de mim? Quando te vejo bem numa mesa rodeada de sorrisos vejo que o problema é realmente todo meu, que é só meu.

Escreva mais vezes durante a semana. Sim, eu sempre te leio. Tenho achado o que escreve “mais inteligente do que seria necessário”. Não me desinteressei deles por isso. Até te peço novos e enormes conceitos, daqueles que parecem ter vida própria. Peço também - e depois de ti tenho pedido mais – que escreva algo que não seja só falta. Me ocupo contigo e sou indiferente ao que não me causa admiração. Quero que tenha prazer ao ler-me. Quero que releia. Quero sempre escrever.

4.10.06

“9. Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Seu rosto está dirigido para. o passado. Onde nós vemos uma cadeia de acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em suas asas com tanta força que ele não pode mais fecha-las. Essa tempestade o impele irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de ruínas cresce até ao céu. Essa tempestade é o que chamamos de progresso.”

Benjamin, Sobre o conceito da história


“Precisamos da história, mas não como precisam dela os ociosos que passeiam no jardim da ciência.”

Nietzsche, Vantagens e desvantagens da história para a vida

30.9.06
















A sua identidade é nosso segredo.

Lamento que seja assim.

Insisto que é a minha dor que diz que antecede a sua letra.

No nosso enlaço realmente escorre sangue, sangue que já quase não tenho.

Entenda, precisamos ir além disso. Não precisamos de tanta poesia.

28.9.06

“Um acontecimento vivido é finito. Um acontecimento lembrado é ilimitado”

“Só conhece realmente uma pessoa quem a ama sem esperança”


W. Benjamin

24.9.06

No corpo feminino, esse retiro

No corpo feminino, esse retiro
- a doce bunda - é ainda o que prefiro.
A ela, meu mais íntimo suspiro,
pois tanto mais a apalpo quanto a miro.

Que tanto mais a quero, se me firo
em unhas protestantes, e respiro
a brisa dos planetas, no seu giro
lento, violento... Então, se ponho e tiro

a mão em concha - a mão, sábio papiro,
iluminando o gozo, qual lampiro,
ou se, dessedentado, já me estiro,

me penso, me restauro, me confiro,
o sentimento da morte eis que o adquiro:
de rola, a bunda torna-se vampiro.

Drummond

22.9.06

Fique à vontade. Sente-se e apóie seus pés sobre a pequena mesa à sua frente. Daqui irei lhe desenhar. Não irei desenhar o rosto mesmo não tendo que decidir a cor dos olhos, já que a tinta é apenas negra, e nem a cor dos cabelos, já que são negros. Não tenho este dom. Resta-me o seu pequeno corpo. Só sei reproduzir simples. Ficará simples. O traço da tinta negra sobre o branco do papel dará a sua cor, a mesma dos dentes sobre o fundo negro e úmido da boca. Uma tatuagem. Teu colo. A mão que abraça o livro. O livro como extensão de teu corpo. Teu corpo como traço. Teu corpo não é um traço. Compreendê-la é um desafio e não só curiosidade. Não posso além de traços. Sozinho posso muito pouco. Do alto não há compreensão. Não se compreende sem contato. É do contato que há. Só, não compreenderei os limites do que posso traçar, o que me é possível. Não vá embora antes que eu a compreenda. Não vá embora antes que você me compreenda. Não vá embora antes que eu desça a escada. Não vá embora porque desci a escada e você não estava mais sentada com os pés sobre a mesinha. Não vá embora antes da compreensão que não houve.

18.9.06

Blue jean baby, L.A lady
Seamstress for the band
Pretty eyed, pirate smile
You married the music man
Ballerina, you must've seen her dancing in the sand
And now she's in me, always with me
Tiny dancer in my hand

Jesus freaks out in the street
Handing tickets out for Gold
Turning back she just laughs
The boulevard is not that bad

Piano man he makes his stand
In the auditorium
Looking on she sings the songs
The words she knows
The tunes she hums

But oh how it feels so real
Lying here with no one near
Only you and you can hear me
When I say softly, slowly

Hold me closer tiny dancer
Count the headlights on the highway
Lay me down in sheets of linen
You had a busy day today

É o que escuto agora, 30 de novembro de 1971.
Nessa época eu não teria largado o tabaco e, não sei como, beberia bem mais.
E nunca ficaria até tarde decorando o que só se aprende por prazer.

16.9.06

Olho o tamanho deste quarto. Olho os livros amontoados, a poeira sobre os moveis, a laranja à minha frente. Fico por minutos olhando as coisas deste quarto. Como a minha cama é grande, maior a cada manhã. Vejo a varanda e a porta de vidro pela qual o sol passa difuso. Olho para as janelas fechadas para a minha segurança. Vejo preás correndo pelo chão.
É correto insistir em ser ouvido se isto me leva a perder a voz?

12.9.06

Cada um com a sua vidinha,
Com as suas inúteis experimentações sintático-semânticas para encobrir a completa falta de jeito e imaginação,
Com os seus preconceitos de época substancializados em sonhos, pior, em projetos.
Com seus rodeios infinitos sobre a existência finita e só simples.
Com os seus ouvidos tampados.

Como disse o outro:
“Nós nos divertimos como impessoalmente se diverte; lemos, vemos e julgamos a literatura e a arte como impessoalmente se vê e se julga; mais ainda, separamos-nos da ‘massa’ como dela impessoalmente se separa; nos ‘indignamos’ com aquilo com que impessoalmente se indigna.” SuZ

E como Eu digo:
“Chame-me de desgraçado, infeliz. Deixe estar e me deixe só.”

10.9.06

O feminino foi primeiramente compreendido como Casa. O sujeito perdido entre os elementos do mundo, está sujeito ao desaparecimento. Esse sujeito ainda não está pronto, precisa construir uma interioridade, mostrar-se in-divíduo, estar definitivamente separado. O risco do anonimato o persegue e a incerteza do amanhã faz com que esse sujeito busque um abrigo. A Casa não é mais um elemento entre outros, um prédio frio, mas ela possibilita a intimidade, pois é, desde já, acolhimento. A casa é hospitaleira porque é feminina. Como em um ‘útero’ agora o sujeito está seguro e é capaz de se construir plenamente. Lévinas, nessa relação íntima (e de intimidade) entre a casa e o feminino acrescenta que o feminino é apenas uma dimensão da morada e não necessitaria da Mulher concreta para aí se dar. O feminino é o acolhimento por excelência.
Mas o feminino é também Mulher, o Outro concreto que está na casa. Um Outro cuja presença é discreta, quase uma ausência, efetivando o acolhimento que a casa potencializa. No Eros, a fenomenologia realiza seu movimento sem se completar, o feminino inaugura uma relação nova que exige conseqüentemente, uma nova postura daquele que se coloca como Mesmo. O feminino é aquele que “se apresenta sem se apresentar”, enunciado que se torna absurdo a uma consciência acostumada com a lógica da coerência. « A simultaneidade ou equívoco dessa fragilidade e desse peso de não significância, mais pesado que o peso do real amorfo, nós chamamos feminidade.» Ao mesmo tempo que a Amada surge, ela também se retira, seu modo de existência é uma fuga à luz, como se habitasse o obscuro (trevas). Assim, a Amada desafia, faz o convite a uma outra relação tanto erótica como racional. O toque não toca uma pele para se apropriar, visando ao prazer do presente, tornando o Outro objeto de desejo. O toque conduz os amantes ao futuro, ao que ainda não é, «um menos que nada». Pensar a Amada além do objeto e do rosto não é pensar alguém que não tenha um rosto, mas é estar diante de alguém que não nos remete nem a nós nem a ela mesma, mas a um além. O feminino, enquanto Amada, está para além do rosto, pois apresenta uma excedência em si mesmo. O encontro com o feminino é o próprio desencontro, em que se busca um outro que não pode nunca estar aí. Lévinas chega a comparar o erótico ao il y a, da noite que se faz no anonimato. A noite do erótico esconde o mistério do que não pode ser violado e conserva por isso, sua virgindade. Tocar o feminino é desde já profaná-lo! O Feminino que é noite, quase il y a, portanto amorfo, não tem o estatuto de ente, não é nomeável, e podemos ainda dizer, nem humano. Entre o animal e a criança, a Amada deixa seu estatuto de pessoa. Poderíamos dizer que a Fenomenologia da carícia descrita por Lévinas a partir da relação com o feminino inaugura uma reflexão que será desenvolvida em toda sua obra, mesmo que essa terminologia seja depois abandonada. O dito filosófico “toca” o Outro em sua ausência, como uma carícia que não quer e não pode se apropriar da pele do Outro, como uma palavra que não aprisiona.Rosto, que é diferente a ponto de ser adjetivado como rosto feminino, quando se olha no espelho, não se vê mais. Perdida em sua própria animalidade, portanto sujeita à natureza, o feminino segue seu destino natural: gerar o outro e não a si. Equivocidade extrema daquela que parece não querer crescer, por isso está entre a criança e o animal, ambos sujeitos a seus instintos, entregues ao tempo, apenas vivendo. Vida de irresponsabilidade, não aberta ao social, vida que se faz na intimidade não necessitante de linguagem, excluindo o terceiro. A Amada deixa o Amado sem palavras. O feminino é então o equívoco por excelência.
A Mulher é o equívoco da linguagem, que ao invés de dizer, faz calar. Sua presença/impresença anuncia o silêncio que é capaz de dizer mais do que qualquer palavra, pois “sem linguagem, nada se mostra. E se calar é ainda falar, o silêncio é impossível”. Assim, em sua condição de passagem, a mulher conduz ao futuro que é Outro. Não é nela que se realiza a ética (pois o universo erótico é ainda ontológico), mas através dela, que o terceiro – filho – tira os amantes de seu egoísmo erótico para abrirem-se à Justiça, como concretude ética. O feminino, que enquanto Casa, possibilita a interioridade; enquanto Mulher é responsável pela exterioridade do Eu (viril). Diante do rosto da mulher, a fecundidade se abre e o Amante se dirige ao Outro que não é mais ele mesmo, mas outro completamente outro – a exterioridade se chama agora Filho e a maternidade é a partir daí subsumida, como se na maternidade o filho fosse imanência e na paternidade fosse transcendência. A paternidade revela uma perpetuação do pai, mas ao mesmo tempo, um diferimento, em que o filho realiza a alteridade do pai.

Se o amante se transcende através do
filho, como a mulher, agora mãe, pode
realizar a sua transcendência? Deixando
certamente de ser “rosto feminino” para
ser apenas Rosto, em que o traço da
feminidade não apareça mais. O Rosto é
então dessexualizado e passa a ser Rosto
(maiúsculo) porque pode ser qualquer um
e todos ao mesmo tempo, contém em si a
singularidade e universalidade ao mesmo
tempo.

O Feminino surge também como linguagem, a maternidade é a metáfora possível para falar da Subjetividade. Assim, o corpo da mulher fala mais que ela mesma. Sua linguagem, no entanto não é de palavras, mas de uma significância além do ser, da essência e de toda consciência. A subjetividade parte do Corpo e não do Logos, mesmo que necessite do logos para dizê-lo, o corpo é a linguagem que precede a língua, lugar (ou não lugar) onde habita a ética. Corpo que é capaz de Dizer o que a mulher não diz, pois arraigada à intimidade da relação erótica, assemelha-se ao Tu familiar e não ao Vós que é altura. A linguagem da mulher, por ser silenciosa não ensina, rompe com a “tagarelice” da consciência, que a tudo quer entender e desvelar. Uma nova relação se faz, que é a desfalecência do ser e fonte da doçura em si. A mulher inaugura uma relação diferente de todas as relações que o homem até então construíra. O ser, sempre compreendido como essência, que invade e define todas as coisas, se encontra ferido em seu movimento pelo feminino. Mas sua ferida é doçura, como se o feminino penetrasse lentamente o domínio do ser para lhe mostrar um “outramente que ser”. Não há violência, não há fala, apenas um silêncio daquela que não precisa se exibir para mostrar que está aí. O feminino é uma presença discreta, quase inexistente, mas que em sua “insignificância” é capaz de anunciar a verdadeira significância.

Magali Mendes de Menezes - O DIZER: Um ensaio desde E. Lévinas e J. Derrida: sobre a linguagem estrangeira do Outro, da Palavra e do Corpo

8.9.06

Como o pé que fica atrás no andar e sem o qual não há andar.
Independente do seu olhar, lá está.

Segure a respiração por um tempo.
É a falta de ar e não mais ar o que quer.

Quando lê procura companhia.
A melhor companhia, a que você escolhe.

Sempre retornamos para as palavras onde começamos.
É porque há beleza.

O que nós somos desvela-se em palavras.
Escute-as.

3.9.06

“Por não olhar senão o que está à vista, o pensamento esqueceu de se interrogar sobre a luz que lhe permitia ver.”

28.8.06

2. Este sol é bonito que só vendo. Há esta hora ele desce muito rápido. Entendo a sua pressa. Eu o sinto. Eu te sinto, e não ouso além disso. Não quer dizer que quero que o sol pare onde quero, que seja torne estático. Ele nunca estará em repouso. Se o vento se tornasse estático desapareceria. O que me aperta o peito é saber que ele voltará todos os dias, eu não.

7. Sou triste por esperar que fique quando nada permanece. Só agora admito que tem razão. Um fluxo não obedece à lei alguma. Apenas te sinto. Eu te escuto. Escute-me. Sinta-me. Quero que seja minha novamente, que me pertença. Irei te esperar e, quando quiser, irei a sua casa.
16. A vontade maior é somar, unir. Há algum outro propósito?

26.8.06

O Florir

O florir do encontro casual
Dos que hão sempre de ficar estranhos...

O único olhar sem interesse recebido no acaso
Da estrangeira rápida ...

O olhar de interesse da criança trazida pela mão
Da mãe distraída...

As palavras de episódio trocadas
Com o viajante episódico
Na episódica viagem ...

Grandes mágoas de todas as coisas serem bocados...
Caminho sem fim...

A.C.

24.8.06

Não existo para bilhões e isso é perfeitamente suportável.
Não existir pra uma pessoa deixa tudo triste.
Sou triste.
Deve ser uma bobagem ser triste por uma pessoa, mas o que posso fazer?
E nem posso contar para ninguém que você existe porque me perguntariam:
Por que não deu em nada?
Tudo isso dói.

Tem aquela pequenina luz indecifrável que às vezes os poetas chamam de esperança e que vejo a cada dia menor.
Também tem o acaso que me põe próximo a ti quando menos espero,
seja dentro de um auditório, seja numa cantina: vai tudo bem com você?
Por fim, só há desespero.

***

Vejo uma grande alegria emanando de tudo.
E eu cada vez mais quieto.
Viva a folia, gira folia!

19.8.06

Je crois entendre encore
Caché sous les palmiers
Sa voix tendre et sonore
Comme un chant de ramiers.
Oh nuit enchanteresse
Divin ravissement
Oh souvenir charmant,
Folle ivresse, doux rêve!

Aux clartés des étoiles
Je crois encor la voir
Entr'ouvrir ses longs voiles
Aux vents tièdes du soir.
Oh nuit enchanteresse
Divin ravissement
Oh souvenir charmant
Folle ivresse, doux rêve!

Charmant Souvenir!
Charmant Souvenir!


Je crois entendre encore - Les Pêcheurs de perles; Georges Bizet (1838-1875)

17.8.06

Vamos iniciar um diálogo. O Primeiro passo pode ser estabelecer um tema. Pode ser uma questão que atormenta - isso rende bastante:

“Oi!” “Oi!” “Que bom te ver! Tenho que te dizer uma coisa: uma questão que me atormenta é saber se você tem uma questão que te atormenta.” “É claro que tenho, é a mesma que te atormenta!” “Ótimo!”

Ambos possuem uma mesma questão que os atormenta e já têm consenso sobre o que é. A hipótese mais plausível é que já se conhecem de algum lugar. Também é muito importante que já tenham chegado a um consenso antes da chegada de questões nominalistas que surgem sempre junto. São formas de vida.

Entre duas pessoas que nunca se viram é mais difícil sustentar uma conversar desse tipo. Apela-se para um contexto mais amplo. Compartilham não um conhecimento de cor, de coisas mais intimas como questões que atormentam – seja lá o que possa ser isto – mais certamente regras de boa conduta com estranhos – ainda mais se forem ambos belos estranhos - e assuntos corriqueiros que as pessoas normalmente conversam com qualquer um:

“Oi! Sabe a que horas passa o próximo ônibus?” “Bem, eu não sei bem, ele sempre se atrasa a esta hora do dia, mas acho que agorinha ele passa.” “Também tenho um problema parecido com o ônibus do meu bairro. É chato esperar, não é?” “Todos os dias este ônibus se atrasa, qualquer dia eu perco a paciência” “Depender de ônibus é triste! Depois reclamam quando quebram os ônibus!” “Qualquer dia faço uma besteira!” “Sabe o que tenho vontade de fazer todos os dias? É pegar uma arma, por o motorista e o trocador para correr e depois por fogo em tudo até não sobrar nada!” “É mesmo... sempre quis fazer isso também!” “Qual o seu nome?”

Um diálogo não é das coisas mais complicadas. Se bem que se possa imaginar o diálogo entre duas pessoas que além de não se conhecerem não sabem se realmente estão a conversar. É bem provável que compartilham significados mais gerais que permitem a sobrevivência entre estranhos sem terem que entrarem na mente de ninguém. Neste caso “estranhos” talvez deva ser qualificado com “formalmente”. Suponha que alguém escreva numa calçada um equação matemática e você com um pedaço de tijolo a resolva. No outro dia há uma nova equação mais difícil e você a resolve. Quando você solucionou a primeira equação se ligou a quem a formulou. Estabeleceu-se um diálogo e a intenção de alguém em formular uma equação para uma pessoa que sabe matemática e que voltou no outro dia esperando uma nova equação de alguém que sabe formular equações matemáticas e, que de agora em diante, as formulam para você. É óbvio que vocês dialogam sem se conhecerem formalmente.
Em que momento posso dizer que conheço alguém? O critério é a quantidade de coisas que se sabe do outro ou é uma intuição, digamos de cor?

Como é ou quais são as formas de se começar uma conversa? Já conversou por olhares? Os que se olham sabem-se. Você já recebeu uma carta sem esperar, como o telefone que toca quando estamos distraídos? Taí um bom motivo para conversar.

Você estava mais bela hoje, mesmo o vermelho não sendo a melhor das cores. Sinto ter sorte de ser tão bela.

12.8.06

- Qual o seu nome?
- Por que pergunta?
- Fui com a sua cara. Só por isso.
- Também fui com a sua cara. Eu já te vi por aí antes.
- Eu também já te vi antes, só não havia prestado atenção. Não foi uma vez apenas.
- Qual é o seu nome?
- Você aceita um café?
- Sim, um pouco amargo.
- Você quer dizer um pouco doce?
- Isto.
- Já está quase na minha hora, foi bom conversar contigo.
- Qual é sua hora?
- Daqui um minuto ou mais. Uma hora eu tenho que ir, infelizmente. Uma hora você também irá, não é verdade? Está agradável, mais terei que ir.
-Tua hora poderia demorar mais, para mim também está agradável aqui, e nem nos conhecemos. Vai ver é porque somos desconhecidos que aqui está agradável.
- Sim, e que quero que a minha hora demore um pouco mais para chegar, na verdade quero que seja a hora que eu quiser, segundo a minha vontade. Está bom aqui.
- Se nós nos conhecêssemos, poderíamos ir embora agora e nos encontrar depois, onde quisermos a hora que quisermos, segundo a nossa vontade. E também seria bom.
- Não sei. Momentos como este são raros, nossa vontade não pode tornar bom tudo a qualquer hora. Há tanta coisa na minha cabeça... Esta tranqüilidade na qual conversamos é só uma exceção e por isso que quero esticá-la e que não saiba o meu nome e que eu não saiba o seu. Não há ainda nada que nos ligue que não a vontade de estarmos aqui. É difícil de não achar que poderemos repetir a dose sempre que quisermos, o que nunca acontece. Cria-se expectativa e nada sai como se espera. Vamos deixar isto como uma boa lembrança, certo?
- Concordo que tudo nos foge, que parece que tudo já está dado, que temos de nos submeter a coisas que levam as pessoas a lugar algum.
- Como assim?
- Veja nós. Eu não estaria aqui se não te visse antes, na verdade sentei aqui na esperança que viesse cá por qualquer motivo que seja. E por sorte veio. Vim para cá segundo a minha vontade, mas não sei dizer por que a minha vontade lhe quis. A minha vontade sou eu, alma e carne. Sou apenas vícios e devo estar te tomando como mais um. E quando penso nisso tudo não consigo achar espaço para a vontade... Mais o que importa? Não me arrependo de esta aqui mesmo que os vícios tenham me guiado até esta mesa vermelha. Aqui está bom. Se sempre começamos errados, que erro seja segundo a minha vontade, segundo eu. Aproveitemos antes que as coisas pereçam, porque inexoravelmente perecem.
- E se perecesse ainda seria bom. Imagine que você pudesse acordar amanhã e sentir que nunca mais nos veríamos. Este momento, este momento agradável, nunca mais existiria entre nós. Talvez não mais se lembrasse dele ou talvez lembrasse uma vez ou outra ou sempre. Como você o lembraria?
- Belo.
- É isto que quero dizer. Se amanhã nos víssemos e depois e depois... Até quando acha que seria sempre belo. Falo da rotina, falo das convenções, falo dos atritos, do meu humor, da minha tristeza, falo de quando eu ficar só, de quando eu precisar de você, de quando eu quiser fugir do mundo. Aqui neste momento há só vontade, “nós” como você disse, mas não durará para sempre. Se eu pudesse estaria sempre aqui assim contigo sorrindo e lhe contado o que vejo de bom nas coisas. Mas olhe para aquele relógio! Há coisas maiores do que nós, que ocupam todo espaço e que podemos ver facilmente e também há coisas tão pequenas que estão por todo espaço e que jamais veremos. Não espaço para nós.
- Não posso concordar com o que disse. Não porque não seja plausível o que diz, mas porque não acredito. Não vou repetir o discurso habitual que todos repetem sem pensar no que dizem de que temos que tentar sempre. Olhe aquele relógio... Em pouco tempo terei que ir almoçar, terei que tirar dinheiro do bolso, depois ir para o ponto, depois trabalhar e depois encher a cara porque não tenho nada de melhor para fazer, para esquecer um monte de coisas que me massacram todos os dias. Não consigo encontrar um sentido para tudo isto. Às vezes, melhor, quase sempre me dá vontade de acordar bem cedo e sair andado e nunca mais voltar. Não acredito que isso seja melhor do que a vida ordinária, mas a questão que me perturba é porque não o faço. De onde vem este medo de não tentar largar esta miséria? Talvez porque eu não seja tão eu assim, mas não importa. No entanto, de onde vem este impulso de não aceitar as coisas e acreditar que há reciprocidade em algum ponto. Ainda falo de vontade, isto que não sei o que é e nem o que pode e que me trouxe para junto de ti. Você não sente?
- Não sei. Talvez esse impulso seja só um sonho e não brote em ninguém e que seja apenas um mera agitação.
- Não acredito. Veja aquele relógio! A sua hora já passou. Se você pudesse ver como é belo o seu sorriso agora, segundo a sua vontade. E toda essa nossa conversa? Olha o que criamos ao conversar... segundo a nossa vontade.
- Talvez tenha razão, mas o mundo não se resume apenas a nós dois. Mas como você disse, que importa?
- Qual o seu nome? Se não disser jamais poderei descobri-la. Jamais poderei ter essa conversa comigo.

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.