3.6.06

O Último Teorema de Fermat: À descoberta do segredo de um problema matemático secular, de Amir D. Aczel

Eis um pequeno livro, claro, informado e de leitura apaixonante sobre a grande façanha matemática deste século que agora se aproxima do seu fim: a demonstração do último teorema de Fermat. Como estudante de filosofia analítica, ouvi muitas vezes referências ao último teorema de Fermat (tal como ainda oiço referências à conjectura de Goldbach) por constituir uma situação sui generis, tanto quanto sei diagnosticada pela primeira vez por Kripke, o famoso filósofo e lógico de Princeton: mesmo quando não sabíamos se a proposição expressa na frase «xn + yn = zn não tem solução inteira quando n > 2» era verdadeira, sabíamos qual era o seu estatuto modal — nomeadamente, sabíamos que seria necessária; se viéssemos a descobrir que era verdadeira, seria necessariamente verdadeira; se viéssemos a descobrir que era falsa, seria necessariamente falsa. Estas elucubrações filosóficas, no entanto, são talvez irrelevantes para o matemático e misteriosas para o leigo...

Para um leigo em matemática, como eu, o livrinho proporciona uma boa leitura. Descreve toda a trama que conduziu à demonstração do teorema e fá-lo de maneira tal que parece um romance. E informa o leitor espantado das origens dos problemas associados ao último teorema de Fermat, origens que ultrapassam até a veneranda antiguidade grega.

Fermat foi um matemático «amador» do século XVII. Apesar de amador (ele era jurista), demonstrou talvez mais resultados matemáticos do que qualquer profissional do seu tempo — e isto apesar de o seu tempo ter sido um dos mais generosos em grandes matemáticos.

A proposição que enuncia o teorema de Fermat não era um verdadeiro teorema porque não estava demonstrado. Mas também não estava demonstrado que era falso. Na verdade, conseguiu-se demonstrar, ao longo dos tempos, que o teorema era verdadeiro para vários números maiores de 2; mas só em 1994 o teorema foi demonstrado para qualquer número maior de 2, por Andrew Wiles, e publicado no número de Maio do ano seguinte da revista internacional de matemática Annals of Mathematics. Antes disso, porém, em 1993, Wiles tinha apresentado uma «demonstração» que meses depois se descobriu estar errada.

Este livro mostra vários aspectos relacionados com a demonstração de Wiles: a primeira tentativa falhada, o trabalho no qual ela se apoia, a demonstração corrigida e todos os aspectos humanos relacionados com as várias demonstrações parciais que Wiles usou na sua demonstração — incluindo um suicídio, traições e as tristes baixezas humanas.

Deste último ponto de vista, o livro é recomendável aos que pensam que descobriram a pólvora quando afirmam que os cientistas são pessoas como as outras — como Feyarabend e os que gostam de denegrir a ciência pelo facto de os seus praticantes serem capazes de ser tão baixos quanto o resto das pessoas. O que estas pessoas não compreenderão nunca é que o que é grandioso na ciência — como na democracia — não é o facto de ser feita por pessoas impolutas, mas o facto de ter mecanismos públicos de crítica, por cultivar a liberdade e por não aceitar o peso da autoridade sem o peso do argumento razoável, publicamente discutível. Tal como a diferença entre a democracia e a ditadura não reside no carácter dos governantes — Cavaco Silva, por exemplo, tem o perfil típico de ditadores como o Salazar — mas antes no sistema que não os deixa fazer todo o mal que gostariam de fazer, também na ciência e na filosofia analítica se instituíram sistemas de controle de erros precisamente porque a natureza humana deixa bastas vezes muito a desejar.

Outro aspecto abordado no livro de Aczel é a intrincada história dos problemas e descobertas da matemática que conduziram ao teorema de Wiles. A perspectiva histórica é extremamente interessante e dá-nos a verdadeira sensação do que é pertencer a uma tradição: continuar o trabalho dos nossos antecessores, corrigir-lhes os erros, expandir-lhes as teorias, acrescentar-lhes horizontes. Claro que os sucessores dos matemáticos antigos são os matemáticos modernos e não os historiadores da matemática — uma verdade óbvia que aparentemente ainda não foi interiorizada pelos portugueses que defendem pertencer a uma tradição filosófica pelo facto de fazerem a sua história. E Aczel também torna evidente que sem preparação matemática não é possível fazer-se história da matemática — outra verdade trivial a que os historiadores portugueses da filosofia resistem.

Do ponto de vista matemático não posso dizer grande coisa porque sou um leigo na matéria. Posso afirmar que as partes nas quais era relevante apresentar alguns conceitos lógicos Aczel o fez com precisão e clareza; o material técnico de matemática pareceu-me claro, mas a sua precisão escapa-me completamente porque não percebo nada de matemática.

Um último comentário sobre a demonstração de Wiles. A demonstração de Wiles consiste na verdade em várias demonstrações encadeadas, aproveitando muitas demonstrações já realizadas pelos seus antecessores. Aczel dá ao leitor uma ideia desse encadeamento lógico. Este aspecto tem o interesse didáctico de fazer as pessoas perceber um aspecto da filosofia analítica que costuma ser mal compreendido (no famoso O Mundo de Sofia, a única frase que por lá aparece sobre o maior movimento filosófico actual — a filosofia analítica — limita-se a afirmar que se trata de uma escolástica tecnicista e irrelevante). Se Wiles não tivesse a paciência de demonstrar calmamente os pormenores, se ele não tivesse a paciência de demonstrar as relações lógicas existentes entre vários teoremas já conhecidos, não teria chegado ao resultado a que chegou. E se os seus pares não tivessem estudado exaustivamente a sua primeira demonstração nunca teriam descoberto o erro que escondia. É este amor à verdade que caracteriza a filosofia analítica, e não um tecnicismo bacoco, tal como é o amor à verdade matemática que caracteriza a matemática e não o tecnicismo bacoco. O tecnicismo é apenas um meio — um excelente meio — de controlar erros e produzir argumentos e teorias precisos. Mas o objectivo, claro, é sempre a verdade, clara e precisa.

Desidério Murcho

30.5.06






















Grigoriy Soroka. Reflection in the Mirror. Second half of 1840s. Oil on canvas. The Russian Museum, St. Petersburg, Russia.

29.5.06

Minha paixões, singulares, citam Pessoa nos fins de semana.
Uma delas, vejo na cadeira da cantina com o mesmo olhar perdido de sempre, que por vezes me achava, e sem poder espiralar.
Outra delas, vejo muito eventualmente quando me digita um "oi" ou "olá", e acho que ela ficou desfocada.
Esquisito, cito Pessoa para as minhas paixões.


Sonhos Prometedores

Tenho mais pena dos que sonham o provável, o legítimo e o próximo, do que dos que devaneiam sobre o longínquo e o estranho. Os que sonham grandemente, ou são doidos e acreditam no que sonham e são felizes, ou são devaneadores simples, para quem o devaneio é uma música da alma, que os embala sem lhes dizer nada. Mas o que sonha o possível tem a possibilidade real da verdadeira desilusão. Não me pode pesar muito o ter deixado de ser imperador romano, mas pode doer-me o nunca ter sequer falado à costureira que, cerca da nove horas, volta sempre a esquina da direita. O sonho que nos promete o impossível já nisso nos priva dele, mas o sonho que nos promete o possível intromete-se com a própria vida e delega nela a sua solução. Um vive exclusivo e independente; o outro submisso das contingências do que acontece.

Fernando Pessoa, in 'O Livro do Desassossego'

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.