8.4.06

Este texto será revisto por toda nossa vida (revisto)


Em algum momento uma pessoa diz o que se passa, o que se vê em si
“Bem, é isto.”
E o outro diz “patético”!
Que mal há em quem julga?
Pato, janela, bola, sorrir. “Mas você diz sorrir em que sentido?”
“Aquela “escola” é tão mais velha do que eu e lá estará quando eu não mais estiver aqui”
O que sou eu diante o mundo?
Você não passa de um sopro
“Gosto de pão”. Você não entendeu, eu “gosto de pão”!
Não é apenas do trigo amassado e assado que falo, falo do pão
Um café amargo e um pedaço pão pela manhã faz lembrar-me de meu pai
Gosto de pão!
“Gosto de você!” Poderia ser Jeane, Andreía, Carine, Renata, Ana Paula
Não há razão para essa escolha
Razão...
Gosto é a palavra, exatamente a mesma de “gosto de pão”,
E “gosto”, tão ou quanto, “gosto” porque me faz bem - até o conhaque desce melhor
Porém “Ana Paula” não é “pão”. Seres distintos requerem discursos distintos
“Isto que você diz ser uma mãe junto ao seu filho não passa de ferro retorcido!”
Mergulhamos no rio, novamente
A cada dia percebo que Jeane não passa de “Jeane”, um ser que abarca inúmeros, infinitos seres, que requer inúmeros, infinitos discursos.
Bem, o que dizer?
“Alto lá! Tais questões não existem para os que simplesmente gostam. Quem pode pensar que se está amando um pão?”
Então, por que essas questões me surgem?
Quando se percebe que o geral não lhe exprime, pergunta-se quem é o acidente, quem é o desvio e a referência. Quando se percebe?
O instante. O salto. O meu salto
Calar-se quando se tem tanto a falar e se pode falar é anular-se
"Aperte a mão de quer bem e diga! Será ouvido, por Deus eu te digo!"
"Só que a mão deve estar estendida a mim, novamente o alheio se põe"
O que eu posso fazer diante do geral que me contém?
Nossos passos harmoniosos aos olhos deles são caóticos por que são nossos?
“Admita que tu é um acidente, e que todos também são; dá-se o primeiro passo”
Que cachorro, ânsia, leite, telha são “cachorro”, “leite”, “ânsia”, “telha”
Que somos “explorados” e “dominados” e que “lutamos”
A linguagem está no geral; como sei que não posso reinventar a pólvora
E quanto já escrevi para ti e não compreendeste!
Em todo fim de dia sinto o peso das minhas escolhas e a leveza de todos os demais
A palavra alheia, mesmo a angustiante, faz-me tão miserável,
é o que todas me dizem e que tento negar a todos;
Eu, ela, eles
Qualquer conversa é sempre boa, mesmo quando se machuca
No fim de todas sempre volto para onde parti; para mim,
Eu, sujeito e objeto
A questão é o indivíduo e não a linguagem
O que é? Qual a sua extensão? Pode-se apontá-lo?
No entanto, não se deve dizer “indivíduo”. O “indivíduo” está no geral
Não se “ofendeu” de pateta o “indivíduo”, e sim, o Indivíduo
Não se compreendeu erroneamente as palavras, e sim, a pessoa.
“Todos os atributos do Indivíduo virão do geral, isto não passa de uma ficção!”
E quem disse a primeira palavra?
“Pensando melhor, é patético sim” - o que me garante que eu estava em erro antes e agora não
“É evidente, posso dizer que isto se refere a aquilo”, como se aquilo possuísse a materialidade do tijolo esfarelado, aquele, com o qual esmaguei a cabeça do pombo
Atributos dariam a “direção”?
Um grande mal é naturalizar, cristalizar o movimento na pureza ideal de um diamante lapidado por bilhões de mãos cegas
De ti tenho só o que interpreto, e quando percebo que os meus sentidos te captam, ora vulgar ora graciosa, vejo a força de meus pais
Posso torna-me uma criança toda vez que me ligo a ti e ao mundo?
Que eu alcance a liberdade, despir-me do que chamam de História?
Chegar ao instante em que se pode dizer que o único atributo que possuo, que é a condição, é o de Lucianizar? Uma só ação, movimento contínuo que sou
Como são belas todas estas andorinhas
Me acordam todas as manhãs e nem as percebo
Só quando preciso agarrar-me a qualquer coisa que seja, para não cair de vez, que as percebo e digo que são lindas... e o meu coração se enche
E se na ocasião elas não estiverem por perto, digo que as nuvens é que são lindas
E quando tudo que está por perto me causa náusea, digo que o que é lindo são os que não vejo mais e sorrio
“Mas o que há em ti que as fazem "lindas"?”
Estão distantes. Inalcançáveis
Então diria que ela, que amanhã passará por ti na biblioteca, é “linda”?
Não. Diria que é linda
“Como pode dizer que algo é algo que não conhece? A distância não dá margem à certeza, falta trato”
Acredita que há um anel em seu dedo?
Olha esta chuva que nos molha! Me diga, por que “chuva”?
Eu só vejo água, indo de um lugar ao outro, um movimento
Vejo o meu espírito igualmente num movimento
a cada palavra que falo, a cada fase do movimento
Olha aquele pássaro! O que está mais alto
Quando ele se tornou um pássaro? Quando o ovo na barriga da sua mãe foi fecundado?
No que você vê “a” criação, há apenas movimento
Me diga o que deseja?
Disso vem todo o sofrimento ou toda a esperança, que no fim dá no mesmo
Mesmo que o que se procura é encontrado, seja numa reitoria ou num auditório
Um “acidente” selecionado por outro “acidente”; é só isso
Observo o espiralar com a mão esquerda,
Contínuo, um movimento
Veja! , um homem preto jogando a mesa pela escadaria da biblioteca
“E por que o faz?”
E como perguntar: “9”?
Pensar é conhecer?
Pensar é querer?
Pensar é amar?
Pensar é criar?
Os seus braços fortes arremessam uma mesa pela escada, e junto ao barulho se vê
o mais belo dos sorrisos... Há ódio ou alegria? E por que um ou outro? “E por que surge tal questão?”
Um quadro para nós, um recorte, um homem preto e não apenas um homem
Se nascesse surdo o que lhe viria?
A angústia de não se decifrar o espiralar por não se ter coragem de se jogar ao movimento; caso contrário, havido o movimento, não haveria o verbo e verbo algum
Espiralar é esperar, compreender, desejar, esquecer, espiralar?
Certamente imaginação. Uma paixão
Uma paixão tal sólida no espírito que no fim da meditação se diz:
“Bem, ela ainda está aí e como a quero, voltemos à vida!”
Voltemos!
A beleza do instante, e os instantes são infinitos
Um sorrisolhar - riso e olhar; ato pertencente a uma única pessoa e percebido como tal unicamente por mim; um instante
Fecundá-te, outro instante
Provar tua buceta como a mais doce fruta,
Hidratar-me com o soro que é o teu suor,
Deitar e adentrar em ti, macia e infinitamente bela como a relva, tudo um instante
Não é uma questão de duração; não é temporal
Purificar a folha da sua fétida brancura
Criar
Veja!
Estas cadeiras, o homem preto, o chão, os sons, o pombo esmagado, todos os tetos acima de nós, todos os livros, Espinosa, Gilberto Freyre, os teus cachos, todo edifício, todos os edifícios em nossa volta, as mangueiras, os meninos que no fim do ano comem as mangas ainda verdes e não passam mal apesar dos pais afirmarem o contrário, a luz, a neve que nunca vimos, o que jamais houve, Neimar, até todas as pedras que sustentam o mundo, tudo se dissolve em sal
A vontade deve tudo
“Pode-se recriar o sentido da vida?” Não, absolutamente!
Só há criação, movimento, jamais desconstrução, só criação

5.4.06

Tal é, pois, o quadro e a situação da filosofia no século XX. Dos grandes filósofos, daqueles considerados gênios u gigantes, Husserl foi o último a colocar a filosofia em compasso com a ciência, ao pensar o fundamento das matemáticas, bem como a tentar pôr a filosofia em sintonia com o seu tempo, ao pensar a crise da civilização européia – porém, que se lembra dele hoje? E quem se há de lembrar depois que Weber, melhor do que ele, pensou o destino do Ocidente n’A ética protestante e o espírito do capitalismo? Heidegger, por seu turno, continua a trilhar a senda do idealismo alemão ao trocar a metafísica pela ontologia e, sem ter o que dizer a respeito da ciência, depois de juntar filosofia e arte, refugiou-se em sua cabana na Floresta Negra e lá ficou à espera do clarão e do chamado, quer dizer, como Schopenhauer e Wittgenstein, agarrou-se à saída mística. Quanto à Wittgenstein, ao que parece, ao trocar o cristal puro do Tractatus pela antropologia cultural difusa das Investigações filosóficas, deixou intocado o silêncio místico. Não os wittgensteinianos, que trocaram a mística pelo pragmatismo, muitas vezes um pragmatismo ralo, cuja consistência e maior densidade vão buscar no culturalilsmo e relativismo das inúmeras visões de mundo disponíveis no mercado das crenças de Londres, Nova York e São Francisco. Lá, como alhures, em São Paulo, em Berlim e em Nova Delhi, os wittgensteinianos – não todos, evidentemente -, continuarão despreocupados e seduzidos, a reverenciar as extravagâncias do indivíduo incomum e a cultuar a mente divina do mestre, sem se darem conta de que os sociólogos, antropólogos e lingüísticas, além de melhor aparelhados, estão mais bem aquinhoados nesse terreno, eu digo, o terreno da cultura e da história.

Domingues, Ivan. Trecho do texto Desafios da filosofia no século XXI: ciência e sabedoria lido pelo autor na conferência “Prêmio Fundep 2005”, do qual foi ganhador

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.