14.11.05

Diálogo sobre o que pode nos exprimir.

- O que você pode me dizer sobre o olhar dela?
- Não sei... só sei que ela me olha. Sinto que há algo,
mas não sei o que é.
- Você sente mas não sabe... é como se você achasse
que sentir não é saber, e isso te deixa angustiado.
Espera decifrar a partir do seu olhar o que se passa
dentro dela, decompô-lo em palavras, e aí encontrar um
chamado, da mesma forma que espera que ela lhe
compreenda?
- Que ela me escreva, fale para mim ou venha pela
boca de outra pessoa, é só assim que suas palavras
chegarão até a mim, sei muito bem disto. Sei o que
quer dizer... mas observe de agora em diante como ela,
de vez em quando, olha para cá e sei disto porque
vejo. O que me diz?
- Talvez nada do que você esteja esperando.
- Como?
- Perceba como ela está conversando com a moça com
quem almoça. Estão conversando de forma aparentemente
amigável... gesticulam, sorriem uma para outra,
olham-se nos olhos... o que há entre elas?
- Mas é diferente!
- Por quê?! De quantas maneiras diferentes
conseguimos olhar? Um rosto agradável pode ser
agradável de quantas formas diferentes? ...Ou uma
feição concentrada, atenta em perceber olhares dos que
estão a volta, pode se diferenciar de uma feição
concentrada que observa uma encenação? ... Talvez ela
vê um paínel, uma coisa que desperta sutilmente suas
emoções, seus desejos... e você sabe do que estou
falando... ou nada disso, apenas um rosto de uma
pessoa habituada a ser gentil para com os que com ela
cruzam todos os dias. Amizade, paixão, compaixão,
gentilezas, uma encenação de um bom ator, que por mais
que incorpore seu personagem jamais o será, requerem
diferentes sorrisos verdadeiros?
- Mas não pode ser desta forma! Vi ela numa sala de
projeção, dentro de um grande teatro, acompanhada de
uma amiga, e ela me observava de uma forma tão, tão...
Não sei se era o lugar ou coisa da minha cabeça mais
era um sorriso tão doce, tão...
- Natural, belo, cativante, capaz de despertar coisas
que não podem ser ditas, que nos fazem sentir nossa
finitude, que nos fazem perceber o quanto as palavras
são miseráveis... Você quer me dizer, ou melhor, para
ser coerente comigo mesmo, imagino que queira dizer
que ela gosta de você?
- Sim e é o que mais quero... que goste de mim.
Sabe... é tão real, não é uma loucura da minha cabeça
achar que ela gosta de mim, alias é o que eu acredito
a um bom tempo. Ela olha é nos meus olhos e sei bem o
que sinto! Como pode dizer que o olhar não serve para
me indicar o que quer, que é no final das coisas
inútil e o que sinto não é legítimo, COMO?!
- Claro que é legítimo, é real, verdadeiro e justo
porque é você que sente, você que o vive e é ele que
te permite viver. Viver o que te permite viver...
poético, não! Então me diga, se eu nunca tivesse a
visto ou, como dizem, nunca tivesse ouvido falar de
amor, como poderia amar? Tal coisa, da maneira que é,
poderia existir sem ela? Eu poderia deseja qualquer
outra pessoa que seja com a mesma intensidade?
- Nisso você tem razão, só se pode querer algo quando
o frio abraça a nossa pele... e sem isto nossa morte
poderia ser até mais digna. Quando a viu pela primeira
vez?
- Ao uns três anos ao mais. Sentei ao seu lado numa
sala aula, num curso preparatório para o vestibular,
sem a perceber de imediato. Freqüentamos esta mesma
sala durante uns poucos dias, não me lembro bem, e
depois só a vi novamente aqui. Trocamos poucos
olhares, mais suficientes para que me apaixonasse, mas
não pude me aproximar porque meus pés ainda tentava
sentir um chão que já não existia, estava preso a um
relacionamento já condenado ao fim.
Já esperava encontrá-la por aqui, mas não a
procurava. Como já tinha acontecido outras vezes...
quero dizer... não foi uma coisa consciente sustentar
a esperança de revê-la, de tê-la, no entanto, quanto a
aceitar o que havia de concreto nessa história, nunca
foi um problema: não há nada que me ligava a ela e que
fosse suficiente para garantir o meu delírio, eu só
podia acreditar que aqueles rápidos e tímidos
instantes não teriam sido em vão, um nada... Um dia eu
estava lá no segundo andar quando uma moça olhou para
mim rapidamente e passou por mim mais rápido ainda. -
Era ela? - Sim, e novamente não a percebi de primeira.
Comecei a procurá-la. Na verdade a partir daí passei a
vê-la por todos os lugares, em todos os lugares por
onde supunha ser um lugar comum a nós, e era sempre
onde eu estava, e isto não era suficiente. Também
comecei a procurá-la em todas as mulheres, todas eram
uma promessa: altas, morenas, com grandes e belos
olhos e cabelos castanhos. Até hoje é assim, é uma
eterna vigília...
- Então isto não é de agora, é muito mais do que
simples gestos. Há tanta coisa por trás que jamais
poderia saber se não me contasse, além de me levar a
crer que cada vez mais que estou, como todos os
demais, cada vez mais distante de afirmar qualquer
coisa sobre o que for que seja. Posso estar me
contradizendo neste momento, mas tenho que lhe dizer
que me relatou apenas representações de
representações; não sei ao certo qual o nome dar e se
fará alguma diferença. Tudo que eu disser sobre será
apenas julgamento, e é só o que as palavras me
permite.
- Não sei se fico feliz com o que me diz, porque não
sei o que posso dizer sobre ela. Além de tudo continuo
na mesma: sem ela e sentindo a sua falta, falta do que
nunca tive. Daí posso achar que realmente é apenas um
delírio, uma idealização.
- Sabe ao menos o seu nome?
- Um amigo me dirá que é Carine. Sempre aparece
alguém que nos diz o que é.
- Mas Carine, de onde vem sua certeza?
- Não tenho certeza, quero apenas acreditar. Mas se
eu tiver certo, não adianta argumentar contra o fato.
Para nós como para os que já a conhecem e para todos
que vierem a conhecê-la e mesmo para os que nunca a
conhecerão ela continuará a se chamar Carine. Por
causa de Carine nosso almoço esfriou. Por causa de
Carine alterei várias vezes o meu percurso para cá.
Por causa de Carine escrevi linhas e mais linhas. Por
causa de Carine todos que a conheceram e a
idealizaram, deixaram de fazer algo para se ocuparem
dela por um momento, por menor que seja. E se
aceitarmos que o que nos faz é que fazemos, Carine
está na nossa carne.
- Não diria tal coisa se não soubesse o seu nome, se
não o tivesse descoberto. Não poderei duvidar de você
se me disser que descobriu o nome dela instantes antes
de abrir a boca para dizê-lo. Mas tem uma coisa na
qual não discordo: Carine está em nossa carne. Na
minha está esta moça que vejo na minha frente e que
pouco tempo atrás nem seu nome sabia. Na sua carne
está Carine, esta mulher que pelo tom de sua voz e por
tudo que já me disse é muito mais do que os meus do
que posso ver. No entanto, apesar de tão diferente ser
o que vemos, e me valendo de suas palavras, existe
algo em comum; para nós, a sua moça, Carine, sempre
será “esta”. Não a conhecemos para além do que podemos
ver; quem ela é para além de sua beleza e olhares? O
que sabe de sua vida? Muito pouco, praticamente nada.
Se ela tiver um companheiro ou, ainda, não tiver
pretensão alguma de estar com você? Ou se ela não for
nada, absolutamente nada, do que pensa?
A qualquer momento ela irá embora e esta conversa irá
continuar, continuar... Amanhã irá lembrar de nossa
conversa e dela lhe sorrindo, e depois de amanhã irá
se lembrar novamente de tudo o que não foi dito a ela,
e depois irá se apaixonar novamente por outra pessoa e
aquele mundo se fechará de vez, e talvez venha se
perguntar algum dia em que poderia ter dado se você
tivesse se levantado, interrompendo-me, e ido até a
sua mesa e dito apenas que é linda e queria estar com
ela de hoje em diante. O que está fazendo?!
- Vou até lá!
- Sente-se! Ela já se foi.

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notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.