13.11.05

O Idiota

"O idiota é o pensador privado por oposição ao
professor público (o escolástico): o professor não
cessa de remeter a conceitos ensinados (o homem-animal
racional), enquanto o pensador privado forma um
conceito com forças inatas que cada um possui de
direito por sua conta (eu penso). Eis um tipo muito
estranho de personagem, aquele que quer pensar e que
pensa por si mesmo, pela "luz natural".
O idiota é um personagem conceitual. Podemos dar
mais precisão à questão: há precursores do cogito?
De onde vem o personagem do idiota, como ele apareceu,
seria numa atmosfera cristã, mas em reação contra a
organização "escolástica" do cristianismo, contra a
organização autoritária da Igreja? Encontra-se traços
dele já em Santo Agostinho? É Nicolau de Cusa quem lhe
dá pleno valor de personagem conceitual? É a razão
pela qual este filósofo estaria próximo do cogito, mas
sem poder ainda fazê-lo cristalizar como conceito. Em
todo caso, a história da filosofia deve passar pelo
estudo desses personagens, de suas mutações segundo os
planos, de sua variedade segundo os conceitos. E a
filosofia não pára de fazer viver personagens
conceituais, de lhes dar vida.
O idiota reaparecerá numa outra época, numa outro
contexto, ainda cristão, mas russo. Tornando-se
eslavo, o idiota permaneceu o singular ou o pensador
privado, mas mudou de singularidade. É Chestov que
encontra em Dostoievski a potência de uma nova
oposição do pensador privado e do professro público. O
antigo idiota queria evidências, às quais ele chegaria
por si mesmo: nessa expectativa, duvidaria de tudo,
mesmo de 3+2=5; colocaria em dúvida todas as verdades
da Natureza. O novo idiota não quer, de maneira
alguma, evidências, não se "resignará" jamais a que
3+2=5, ele quer o absurdo - não é a mesma imagem do
pesamento. O antigo idiota queria o verdadeiro, mas o
novo quer fazer do absurdo a mais alta potência do
pensamento, isto é, criar. O antigo idiota queria não
prestar contas senão à razão, mas o novo idiota, mais
próxinmo de Jó que de Socrátes, quer que se lhe preste
contas de "cada vítima da história", não são os mesmos
conceitos. Ele não aceitará jamais as verdades da
história. O antigo idiota queria dar-se conta, por si
mesmo, do que era compreensível ou não, razoável ou
não, perdido ou salvo, mas o novo idiota quer que lhe
devolvam o perdido, o incompreensível, o absurdo.
Seguramente não é o mesmo personagem, houve uma
mutação. E, todavia, um fio tênue une os dois idiotas,
como se fosse necessário que o primeiro perdesse a
razão para que o segundo reencontrasse o que o outro
tinha perdido a princípio, ganhando-a. Descartes na
Rússia tornou-se louco?"

Deleuze e Guatarri, O que é a filosofia?

Um comentário:

Anônimo disse...

Pensei que você tinha dado pra trás, que demora.
Excenlente chegada!

notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.