18.10.11

Numa mesa de biblioteca, ocupo-me de lembranças e patifes


“Dê-me um único motivo cabal para que eu deixe de pensar da minha maneira para pensar como a sua?” Todos gaguejam. É uma pergunta simples, porém longe de ser tola. A demonstração de uma conjectura matemática é única e definitiva, não há argumento complementar ou ataque retórico que a imponha. Não é o que Perelman diz? Sua demonstração é seu único argumento, e definitivo. Alguém pode guiar toda sua vida dissimulando auto-engano e realmente acreditar que tudo o que sabe é verdade, sem que apresente algum tipo de argumento factual ou analítico que o mantenha – é essa exigência não pode ser reduzida há um mero jogo de linguagem – nem os Fouca'u'lts da vida ousaram tanto. Se por ventura, venham a adotar a posição contrária de que sabem algumas coisas, que lhe pagam as contas e conquistam a admiração de pessoas menos “atentas” – e que não são mais bem arquitetadas do que as coisas que arquiteturas alheias – e que na verdade estão bem longe de qualquer coisa que não remetem apenas a essas coisas sabidas elas mesmas, ou elas irão achar que nada substantivo justifica a posição superior que pode virem a ocupar por conta disso, ou, cinicamente, jogam a questão para debaixo do tapete e diz que as coisas são assim e, portanto, pouco importa – ou podem ainda se afirmarem cínicos, e como isso se torna uma ação ao nível da consciência, uma autoafirmação de seu próprio mau-caráter ou canalhice torna-se límpida. Normalmente são essas pessoas que esquecem, ou nunca aprendem, que é sempre muito mais fácil passar o arado sobre vermes.

Bem, por que eu disse essas coisas? Por acaso lembre que vivemos em um sistema social de larga escala - entendam que digo no sentido de que existem milhões de pessoas que compartilham tacitamente normas e valores – que mantém suas assimetrias por meio de estratégias, dentre várias legítimas – entenda, “sem fuder com ninguém” – que vão da constante e real ameaça física, acumulação por restrição às benesses do capital, ao aniquilamento de qualquer traço de autoestima. Esse é um golpe certeiro na maneira pela qual uma pessoa se vê perante as outras pode determinar irreversivelmente suas possibilidades de ascensão social e econômica. Quantas pessoas não escutam que estão inerentemente fadadas à exclusão de ambientes e circunstâncias de maior prestígio porque são feias, burras, negras, índios, mulheres, bichas, roceiros, sapatões, pobres, nordestinos, piões, e um monte de outras características supostamente adscritícias, como se tudo o mais que determinasse sua posição fosse exógeno ou tão somente não existisse. O triste é ver alguém que assim foi tratado dizer o mesmo para outros. Estas seriam cínicas ou de mau-caráter?

Uma amiga, antropóloga, das poucas pessoas que realmente sabem um pouco de minha vida até pouco tempo atrás, pois não está atualizada do que faço atualmente – pesquisando aqui no sul sistemas multiAgentes, complexidade e economia pública e coisas que orbitam isso tudo, coisas que ainda pouco sei – disse que sabia que eu achava tudo o que ela estudava uma grande bobagem – e até ela mesma acha isso de algumas coisas que ela mesma estuda. Mas ela sempre defende que são coisas lindas e necessárias à vida das pessoas, logo não estão no reino dos sistemas bem formados com regras não-ambíguas de inferência, o que, aliás, é correto, tal como as restrições feitas por Kant e Wittgenstein, respectivamente, sobre razão e a linguagem – porém, sempre lhe procurei lhe apresentar minhas posições de maneira clara e honestamente sem nunca dizer que eram bobagens, até porque acho que não são. Em algumas circunstâncias ficava angustiada, o que é próprio dela, talvez mais das mulheres do que dos homens, eu acho.

Ver-se como o personagem de sua própria vida é diferente de se ver fazendo coisas cotidianas sem fim. Sim.

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notas de um dia de cão. esse é o nome do livro. um livro a duas mãos.