Errata: Wittgenstein sempre.
O problema de valorizar demais a linguagem, o significado, a intencionalidade, o jogo dos significantes, ou a différance, é que nos arriscamos a perder as vantagens conquistadas através da apropriação conjunta de Darwin, Nietzsche e Dewey. A partir do momento em que começamos a reificar a linguagem, começamos a ver lacunas entre o tipo de coisas que Newton e Darwin descrevem e o que Freud e Derrida descrevem, ao invés de ver apenas divisões convenientes no interior de uma caixa de ferramentas – divisões entre porções de ferramentas lingüísticas úteis para várias tarefas diferentes. Começamos a ser cativados por frases como “o inconsciente e estruturado como linguagem”, porque começamos a pensar que as linguagens precisam ter uma estrutura distintiva, completamente diversa da estrutura dos cérebros, computadores ou galáxias (ao invés de apenas concordar que alguns dos termos que usamos para descrever a linguagem podem, de fato, ser propícios para a descrição de outras coisas, tais como o inconsciente). Tomamos a irredutibilidade do intencional – a irredutibilidade das descrições de atitudes sentenciais tais como crenças e desejos a descrições do movimento de partículas elementares – como sendo de algum modo mais significativa filosoficamente do que a irredutibilidade das descrições de uma casa à descrição da madeira, ou das descrições dos animais à descrição das células.
Como
argumentei no volume I, um pragmatista deve insistir que tanto a
capacidade de redescrever quanto a irredutibilidade são de pouco valor.
Nunca é muito difícil redescrever qualquer coisa que se queira em termos
que sejam irredutíveis a – isto é, indefiníveis nos termos de – uma
descrição prévia dessa coisa. Um pragmatista deve também insistir (com
Goodman, Nietzsche, Putnam e Heidegger) que não há nada que seja o modo
de ser das coisas nelas mesmas, sob nenhuma descrição, apartado de todo e
qualquer uso no qual os seres humanos queiram inseri-las. A vantagem de
insistir nesses pontos é que todo dualismo que possa surgir no decurso
do caminho, toda cisão que um filósofo esteja tentando superar ou
complementar, pode ser tomada como semelhante à mera diferença entre
dois conjuntos de descrições da mesma porção de coisas.
“Poder
ser tomada como semelhante”, nesse contexto, não está em contraste com
“realmente é”. Não é como se houvesse um procedimento para descobrir
quando alguém está realmente lidando com duas porções de coisas ou uma
porção. Coisidade e identidade são também relativas à descrição. Nem é o
caso de dizer que a linguagem realmente é apenas um liame
de sinais e ruídos que os organismos usam como uma ferramenta para
conseguir o que eles querem. Essa descrição nietzscheana-deweyana da
linguagem não é a verdade real sobre a linguagem mais do que a descrição
de Heidegger de que a linguagem é “a morada do Ser”, ou a de Derrida de
que a linguagem é “o jogo das referências significantes”. Cada uma
delas é somente mais uma verdade útil sobre a linguagem – mais um
exemplo do que Wittgenstein chamou “lembretes para um propósito
particular”.
O
propósito particular atendido pelo lembrete de que a linguagem pode ser
descrita em termos darwinianos é nos ajudar a abandonarmos o que, na
introdução ao volume I, chamei de “representacionalismo”, bem como a
distinção entre a realidade e aparência. De modo nada surpreendente, eu
considero as melhores partes de Heidegger e Derrida aquelas que nos
ajudam a ver a qual a aparência das coisas sob descrições
não-representacionalistas, não-logocentristas - qual sua aparência
quando começamos a tomar como certo que o caráter de qualquer coisa é
relativo à escolha de uma descrição, e assim começamos a nos perguntar
como ela pode ser útil, ao invés de como ela pode ser correta. Eu
considero as piores partes de Heidegger e Derrida aquelas em que eles
sugerem que finalmente apreenderam corretamente a linguagem, e a
representaram acuradamente, como ela realmente é. Essa são as piores
partes que deram a Paul de Man o ensejo para dizer coisas como “a
literatura... é única forma de linguagem livre da falácia
da expressão imedita”, e que permitiram a Jonathan Culler insistir que
uma teoria a linguagem deve responder a questões sobre ”a natureza
essencial da linguagem”. Essas são também as partes que induziram toda
uma geração de teóricos da litteratura americanos a falar sobre a
“descoberta do caráter não-referencial da linguagem”, como se Saussure,
Wittgenstein, Derrida ou qualquer um tivesse mostrado que referência e
representação eram ilusões(enquanto opostas ao fato de serem noções que, em certos contextos, podem proveitosamente ser dispensadas).
Se
tratarmos isso simplesmente como um lembrete, ao contrário de como uma
metafísica, então eu penso que o que se segue é uma boa forma de se
agrupar do mesmo lado o resultado tanto da tradição
Quine-Putnam-Davidson na filosofia analítica da linguagem quanto da
tradição Heidegger-Derrida de pensamento pós-nietzscheano. Considere
sentenças como os fios que ligam sinais e ruídos emitidos pelos
organismos, fios capazes de ser associados aos fios que nós mesmos
expressamos (através do processo que chamamos de “tradução”). Considere
crenças desejos e intenções – atitudes sentenciais em geral – como
entidades que são postuladas para ajudar a predizer o comportamento
desses organismos. Agora pense nesses organismos como gradualmente
evoluindo a partir do resultado da produção de fios cada vez mais longos
e complicados, que os habilitam a fazer coisas que antes eram incapazes
de fazer com a ajuda de fios mais curtos e simples. Agora pense em nós
como exemplos de tais organismos altamente evoluídos, e em nossas
esperanças mais levadas e temores mais profundos como viabilizados por,
entre outras coisas, nossas capacidade de produzir os fios peculiares
que fazemos. Então, pense nas quatro sentenças que precedem a esta como
mais alguns exemplos de tais fios. Em penúltimo lugar, pense nas cinco
sentenças que precedem a esta como um esboço da morada do Ser
redesenhada, um novo domicílio para nós, pastores do Ser. Finalmente,
pense nas últimas seis sentenças como ainda outro exemplo do jogo dos
significantes, mais um exemplo do modo como ainda outro exemplo do jogo
dos significantes, mais um exemplo do modo pelo qual o significado é
infinitamente alterável através da recontextualização dos signos.
Essas últimas sete sentenças são uma tentativa de abarcar animais, Dasein e différance em
uma única visão: uma tentativa de mostrar como se pode modular do
elemento darwiniano, através do heideggeriano, até o derrideano sem
muito esforço. Elas são também uma tentativa de mostrar que o importante
nessas duas tradições, a que conflui para Davidson e que flui para Derrida, não é o que dizem, mas o que elas não
dizem, o que elas evitam mais do que elas propõem. Observe que nenhuma
dessas tradições menciona o sujeito cognoscente ou o objeto do
conhecimento. Nenhuma delas fala sobre uma quase-coisa chamada
linguagem, que funciona como intermediária entre sujeito e objeto.
Nenhuma delas nos dá espaço para a formulação de problemas sobre a
natureza ou a possibilidade da representação ou intencionalidade.
Nenhuma delas, em resumo, nos confina ao espaço no qual a tradição
representacionalista, cartesiano-kantiana, sujeito-objeto, no colocou.
Isto é tudo que essa tradições têm de bom? Todos esses pensadores eminentes estão simplesmente
mostrando um caminho para a mosca sair de sua empoeirada garrafa, para
sairmos de uma dilapidada morada do Ser? Sinto-me fortemente tentado a
dizer: “Claro. O que mais você pensava que iria conseguir da
filosofia contemporânea?” Mas isso pode soar como uma redução. E assim
seria se eu estivesse negando que as obras desses homens são
indefinidamente recontextualizáveis, e podem vir a ser úteis em uma
variedade sem fim de contextos hoje imprevisíveis. Mas não é redução
dizer: não subestimem os efeitos que ficar se debatendo no interior
dessa garrafa em particular pode ter sobre a mosca. Não subestimem o que
pode nos acontecer, o que nós podemos nos tornar ao sair dela. Não
subestimem a utilidade do escrito meramente terapêutico, meramente
“desconstrutivo”.
Ninguém pode estabelecer nenhum limite a priori para
o que a mudança na opinião filosófica pode produzir, não mais do que
para o que a mudança na opinião científica ou política pode fazer.
Pensar que alguém pode conhecer tais limites é tão ruim quanto pensar
que, aprendemos que a tradição ontoteológica exauriu suas
possibilidades, nós precisamos nos apressar para reformular todas as
coisas, tornar todas as coisas novas. Mudanças nas perspectivas
filosóficas não são nem intrinsecamente centrais, nem intrinsecamente
marginais – seus resultados tão imprevisíveis quanto as mudanças em
qualquer outra área da cultura.
Ensaios sobre Heidegger e outros: escritos filosóficos II, Richard Rorty
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